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A segunda e última parte do conto que fiz quando entrei para a Real Sociedade dos Escritores Fantasmas. Se curtiram, participem! Usem os comentários aqui, ou lá na Fanpage, e escrevam suas opiniões, elas serão muito bem-vindas!
Ludmila entrou no imenso pavilhão do Riocentro mostrando seu crachá, e, em seu português fluente, foi dizendo aos seguranças armados de fuzis:
— Jornal Die Welt, Alemanha. Tenho acesso aos debates principais.
O Scan de retina a identificou, e ela pôde passar. O caminho até o Riocentro foi tranqüilo, e ela pôde ver a maravilhosa exuberância do Rio enquanto seguia até o antigo centro de convenções. Depois que se tornou Estado Americano, a cidade era um gigantesco e arborizado conjunto habitacional, cheio de pracinhas delicadas, floridas, onde crianças brincavam. Sem balas perdidas, sem favelas, e muito em breve, o país todo sem nenhuma soberania. Ludmila tinha olhos ainda mais tristes, diante do pensamento. O Rio de Janeiro era um show-room montado pelo ocidente para o oriente.
No meio do burburinho, com toda aquela gente de mídia já saindo das salas de imprensa e indo para o imenso salão de debates, a fotógrafa ouviu uma voz conhecida:
— Lu! Lu, aqui! — Acenava para ela um seu colega fotógrafo, o Moura, que ela conheceu em sua passagem por São Paulo há uns anos, e antes fôra Eduardo Moura Júnior, e agora é um bastante próximo (o mais possível, para ela) o Moura — Venha, querida, temos cadeiras bem lá na frente.
Ludmila agora sorriu, docemente, acenando quase alegremente para o rapaz, talvez por causa das pílulas azuis, talvez por ver esperança no Moura e em seu sorriso franco, talvez por nenhum motivo especial. Mas era justamente aquilo que queria ouvir do Moura: que ele havia conseguido para ambos uma vista privilegiada do maior evento histórico daquela década: a discussão que traçaria metas para o fim das guerrilhas. Ela sonhava há muito tempo com este dia, o fim de todos os atentados.
Ahmed chegou e seguiu pela passagem diplomática, onde, curiosamente, fizeram uma revista bem superficial que pouco o atrasou, e então foi recepcionado por outros chanceleres, seguiu todo protocolo, mas pediu que um homem de sua confiança verificasse e o avisasse quando todos os presidentes estivessem reunidos com suas comitivas dentro do Riocentro. Cerca de uma hora e meia depois, todos estavam presentes, sendo a última a chegar a vice-presidente americana Thierstein. O próprio presidente McAnderson estava muito indisposto, e ficou no hotel em Copacabana, foi o que informou seu homem de confiança a Ahmed.
Todos os líderes mundiais então tomaram seus lugares, que formavam uma meia-lua de vários níveis, no grande palco, deixando os políticos de frente para a platéia formada em sua maioria por jornalistas e personalidades. Thierstein começou a falar ao microfone, em um límpido português de Moçambique:
— Esta é uma noite histórica… — E imediatamente ela foi interrompida por aplausos entusiasmados de toda a platéia.
Ludmila sentou-se na primeira fila. Ela tinha a impressão que o cavalheiresco Moura a estava cantando, novamente, talvez quisesse mesmo tomar uns drinques com ela, depois de tudo. Ela sorriu novamente, agora sem jeito, diante das perspectivas. Foi quando os líderes entraram em cena, e tomaram seus lugares. Ela, e dezenas de outros fotógrafos começaram a enviar fotos e filmes via Internet imediatamente para seus jornais. Sob a miríade de flashes, a vice-presidente americana se ergueu, bela e elegante como sempre, com seus 74 anos, e começou a falar, mas logo sua voz foi coberta pela entusiástica reação da platéia. A própria Ludmila aplaudia intensamente. Foi quando Mhd Ahmed se levantou.
Mhd Ahmed Qanbar disparou.
— Com licença, senhora vice-presidente, mas eu preciso da atenção de todos agora! — Disse ele, levantando ambas as mãos para o céu, e só continuando quando todos os olhares se voltaram para ele: — Acabo de enviar aos aparelhos de todos os presentes, planos dos EUA para o uso de uma nova arma, já operacional, no Oriente Médio. Esta arma produz um pulso orgânico-energético a partir do corpo de um soldado, e este pulso é capaz de destruir completamente qualquer organismo vivo em um raio de 1000 quilômetros! Com alguns homens-bomba estrategicamente posicionados, todo o Oriente Médio, e talvez o mundo, fica a mercê dos EUA! — gritava a plenos pulmões o homem que não disparou os explosivos sob sua responsabilidade nos atentados em Madri. — Vejam os documentos, e acessem os satélites nos endereços anexados! Verão as fábricas que desenvolveram o que eles chamaram de Projeto Jihad!
Os repórteres se acumulavam diante do palco, fotografando, gritando perguntas, se acotovelando, enquanto os líderes mundiais acessavam os dados e demonstravam claramente seu horror diante da nova arma americana. Havia de tudo, inclusive documentos assinados com a chave criptográfica mundial da Casa Branca, as provas eram fartas e contundentes. Tanto que a vice-presidente começava a ser acompanhada para fora do salão por seguranças de seu governo.
— Isso precisa acabar! — Gritava Ahmed — Quantos mais vão morrer por causa da ganância capitalista? A liberdade americana custa sangue! O solo Americano é banhado do sangue do mundo!
— Nós fizemos sim! — Gritou a vice-presidente, em seu estilo decidido, desvencilhando-se de seus agentes, homens e mulheres em ternos negros — Mas porque não suportaríamos mais outro Dia Onze. Quantos houve desde 2001, Ahmed? Quantas vidas e quanto sangue Laden bebeu para se satisfazer? Achamos que nunca teríamos um homem como você na liderança de seu povo, precisávamos ter um modo de dar fim às mortes!
— Destruindo todo o oriente médio!?! — Vociferou Mhd Ahmed.
— Não! — Gritava a bela senhora, agora bastante descomposta — Apenas os líderes! Pelo amor de Deus, não somos terroristas!
— Mentira! Irmãos! — Clamou ele, voltando-se para todos os líderes do oriente médio — Esta noite é decisiva. Ela tem a arma definitiva, mas não tem mais a vantagem da surpresa! Precisamos nos unificar, mostrar a eles que Jihad é muito mais que destruição, pois senão eles vão mais uma vez deturpar o Islã, e usar a Jihad contra nós! Digam agora, se me apóiam, ou morram aos pés do capitalismo!
Houve silêncio. Um silêncio tenebroso. Toda a mídia esperando a resposta dos líderes orientais. Era uma possível declaração de guerra mundial, o início da Terceira, e talvez última guerra. Thierstein deu um passo à frente, indo em direção aos orientais, quando uma voz se fez ouvir no silêncio:
— Isto tem que acabar aqui. Olho por olho. — E Ludmila tomou um comprimido rubro, incandescente, que desceu por sua garganta expelindo radiação e acionando uma série de nano-geradores, indetectáveis, de energia, inseridos em seu corpo por alguém que, como ela, acreditava que o mundo precisava de novos líderes. Ludmila acreditava, há muito tempo, que não havia outra saída, que a única maneira de acabar com o horror dos atentados, era cometer o maior deles, e liquidar os homens e mulheres que mantinham o mundo como ele foi até aqui. E um momento depois Ludmila parecia ser feita de energia azulada e vibrante, expelindo ondas que iam cada vez mais longe, enquanto a moça sorria… Finalmente não precisaria mais das pílulas.
Paz… Por muitos e muitos dias, não se ouviu uma única voz, nem o trinar de o único pássaro. Afora o uivo sombrio dos ventos, quase toda a região sudeste do Brasil foi tomada de uma quietude aterrorizante. A ausência total dos sons da vida.
FIM.
Meus caros leitores, partilho hoje com vocês a primeira parte deste conto (a segunda parte posto no próximo sábado), espero que curtam, é uma das primeiras obras criadas quando se reuniam os membros da Real Sociedade dos Escritores Fantasmas.
Ludmila piscou algumas vezes. Havia usado um prendedor de roupas para fixar a cortina de seu quarto, de modo a luz do sol não entrar logo pela manhã. Mas o ventilador de teto fez a cortina arrancar o pregador. Seu quarto de pensão ficava voltado para o raiar do dia, e raramente ela conseguia dormir além das sete da manhã, quando o clarão ígneo irrompia no cômodo e se derramava sobre ela. Prática e econômica, não alugava um quarto caro, mesmo tendo dinheiro para isso.
Mhd Ahmed Qanbar havia sonhado novamente com a guerra. Estava exausto quando acordou. Fazia muitos anos que dormia a base de remédios, e não descansava quase nada em seus sonhos. Suas mãos tremiam quando saiu da cama e cambaleou até o banheiro, que estava inundado pela luz do sol tropical que entrava pelo basculante. Ahmed fez sua ablução cuidadosamente. Então, tomando o Corão, voltado para o oriente distante, orou:
— Allahu Akbar. _ Disse, com a voz rouca. Era preciso desligar sua mente dos eventos deste dia fatídico que se iniciava.
A moça se levantou, e espreguiçou o corpo claro. Era um dia de trabalhos, muitos, mas desejava ter perdido a hora, por isso “esqueceu” de programar o rádio relógio e tentou impedir o sol de nascer. Não adiantou. Mas, por outro lado, era bom estar livre dos umbrais escuros de pesadelos e traumas que era seu sonho desde onze de fevereiro de nove anos atrás, quando... Quando Luana e Ricardo morreram nos atentados a bomba em Madri. Ela tomou seus comprimidos azuis e, um pouco mais calma, relembrou o terror...
Desde que Laden havia perecido finalmente, alcançado pelas garras do grande satã, ele, Mhd Ahmed, havia sido eleito informalmente por todos os outros como um líder. Para muitos, foi o momento em que a causa se perdeu, para outros, o dia em que a luz da razão brilhou nos olhos dos Guerreiros de Alah. O fato é que Mhd Ahmed era um homem ponderado, menos afeto a eloquência dos atentados, e muito mais disposto a negociar. Pelo menos até ontem à noite, quando seu primo, Moqtada Al Qanbar, lhe mostrou os documentos que provavam que o grande satã havia desenvolvido a arma final.
Ela queria muitos doces para o marido e a filha. Queria uma vida adocicada. Fora uma vida difícil até então, havia chegado a Europa como imigrante ilegal, e trabalhara em muitas coisas, algumas que ela preferia não lembrar, até o dia em que havia fugido de um tarado e pedia carona em uma estrada deserta em Cherez de La Frontera, e esbarrou (ou foi gentilmente levada pela mão do destino) com Ricardo. Fiscal de obras, ele dirigia um fora de estrada e a ajudou. Homem também castigado pela vida, Ricardo era divorciado e tinha receio que a psicose da ex-mulher o alcançasse, então ele vivia de cidade em cidade, percorrendo o país e fazendo manutenção de túneis de fibras óticas para uma grande companhia. Após quatro horas de viagem, e duas vidas partilhadas em uma longa e divertida conversa, sorriram um para o outro, e sabiam, intimamente, que iriam se ver novamente. Viram-se, casaram-se, e tinham uma linda filha, quando as prateleiras da San Ginés vibraram, anunciando a carnificina.
Mhd Ahmed então percebeu, horrorizado, que finalmente, baseado nos grandes conflitos que incendiavam a Europa hoje, e a participação dos Guerreiros de Alah em combates estratégicos nas ruínas de Israel, o grande satã tinha o apoio da opinião pública necessário para exterminar o Islã com sua arma final. Era preciso detê-los, e a reunião do dia seguinte seria o único dia em que isto poderia acontecer.
— Moqtada, sou ponderador, sabe disso.
— Sim, Ahmed. Sei disso. Mas Alah fez com que estes documentos viessem as suas mãos talvez por isto mesmo. Veja, os malditos aniquilam toda a gente do oriente, e ficam com as terras de nossos ancestrais para si. Depois o que vai ser mais? Este Brasil e sua preciosa água? Todo o mundo? Satã estende suas garras horrendas sobre todos nós, e Alah pôs a decisão do que fazer quanto a isso em suas mãos. Estarão todos juntos esta noite, os líderes de nosso povo e os do ocidente. Amanhã. Não haverá momento melhor, nunca mais.
— Sim... Sim... Desde Madri que não sou forçado a tomar uma decisão tão terrível, primo.
— Como lhe prometi, mantive silêncio sobre Madri até hoje. Mas agora não há como não dizer: será covarde de novo, Ahmed? Vai virar as costas ao sofrimento e ao sangue?
Foi horrível tentar esquecer o que viu em Madri. Ludmila levou um ano para parar de chorar. Outro ano para evitar o suicídio, e um ano mais ainda para começar a perceber que deveria ter um propósito, deveria andar, ir adiante, viver.
Ela pegou suas câmeras, verificou as conexões com a Internet delas, e guardou seu smartphone na bolsa, junto com um milhão de outras coisas guardadas em uma típica bolsa de mulher. Estava quase pronta, havia conseguido se concentrar nos afazeres do dia, apesar do tormento das lembranças, e tomou seu banho, pôs um vestido elegante e leve, pois era verão no Rio de Janeiro, e arrumou documentos e ferramentas de trabalho. Ela estava no Rio, a princípio, para cobrir a Cúpula do Oriente Médio, que reuniria no Brasil líderes de todos os países daquela região em um encontro para discutir medidas para acabar com a guerrilha na Europa e em Moscou. Ludmila era uma das melhores fotógrafas freelance da Alemanha.
Ela passava batom, quando se viu no espelho do pequeno banheiro. Estava chorando ainda, lágrimas quentes e amargas percorriam seu pálido rosto. Ela parecia agora uma madona. Pegou mais comprimidos azuis e os engoliu avidamente.
Não demorou muito a tomar a decisão. Não havia outro que pudesse fazer aquilo. Ele, Mhd, estaria bem no meio de tudo, e de lá poderia disparar a bomba. Acordou, orou e meditou durante o dia, e chegando a hora, armou-se do que era necessário, e partiu para a Cúpula. Mhd Ahmed tinha o hábito de ser prático, e de agir sem pestanejar quando necessário. Dentro do carro oficial que o estava levando como representante da Al Qaeda para os diálogos de paz, ele vestiu o colete, verificou se tinha tudo que precisava a mão, respirou fundo e lembrou Madri. Naquela época sua decisão foi outra, ele achava.
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Nota: Allahu Akbar : Deus é Grande (http://pt.wikipedia.org/wiki/Takbir).