wagnerrms - Wagner RMS
Wagner RMS

Escritor, Roteirista, Ficção Científica e Fantasia. Comprar Livros

95 posts

Latest Posts by wagnerrms - Page 3

6 years ago

Sob o Olhar da Eternidade

image

Leia agora dois capítulos deste livro:

A Xícara

Novamente, novamente e novamente. Todo dia era — quase, havia os quanta — tudo sempre igual. Quando a moça loira (antes havia sido morena, ou um rapaz, ou ainda uma senhora adorável cor de avelã, mas a entrega era sempre a mesma) lhe entregou, escorregando por sobre o balcão, a xícara de porcelana cheia de fumegante e cheiroso café, puro, preto, Milton Steinberg se arrepiou todo, como se fosse a peça de porcelana uma víbora! Então ele olhou em torno, só percebendo naquele instante que estava na cafeteria, a mesma de ontem, de antes de ontem, de todos os dias! Olhou de novo para a xícara, pois logo a superfície do café vibraria, captando, com suas ondulações, a explosão distante, e tudo recomeçaria, de novo e de novo. — O de sempre, senhor Milton. — Falou a atendente, com seu sorriso claro e sardento, como se o conhecesse há anos, como se fosse ela mesma que lhe entregasse aquela mesma xícara (seria a mesma? Átomo a átomo?) toda manhã. Sua mão trêmula pegou a xícara por cima, como quem pega um pote de alguma coisa perigosa. Foi neste instante que a jovem atendente viu a pistola na outra mão de Steinberg e foi recuando, dizendo: — Ai meu Deus, ai meu Deus... O homem armado arregalou os olhos, fitou a arma em sua outra mão, como se a visse pela primeira vez, embora soubesse claramente como ela tinha ido parar lá. Depois, com um movimento brusco da cabeça, relanceou em volta novamente, esticando a cara para fora da cafeteria, e foi então que ele viu homens uniformizados! Policiais, carcereiros! Encostados em uma viatura, não muito distantes dali, conversando soturnamente. Milton olhou de volta para a atendente, que, acuada, continuava rogando a Deus e a ele por misericórdia. Com um olhar de súplica, Milton apontou a pistola para a jovem, que se encolheu, mas se calou, chorando baixinho. Talvez, pensava o homem, suando e tremendo, mesmo que atirasse nela, ela, no dia seguinte, voltaria, ou talvez a versão idosa dela. Steinberg sentia um nó na garganta, o peito oprimido, talvez tivesse que atirar, o sistema estava ali, em torno dele, novamente, novamente e novamente, cada parte agora eternamente corrupta do sistema impelindo seu dedo no gatilho, talvez para atirar em si mesmo, antes que fosse arrastado e trancado por toda a eternidade em uma cela (onde quer que ficasse, naquele dia eterno, jazeria para sempre). Sem saber o que fazer, ele baixou um pouco o punho armado, percebendo que aquilo era inútil, terrivelmente consciente de que o dia, novamente, novamente e novamente, o levou até aquela xícara, ele chorou, agoniado. Na xícara, o café ondulou, rápida mas delicadamente, no mesmo instante em que Milton percebeu que seus carcereiros vinham correndo em sua direção, e em que ele levantou novamente a arma, pronta para atirar. Outros funcionários da cafeteria começaram a se esconder e a gritar. A jovem do outro lado do balcão exibia as mãos espalmadas à frente de si mesma, que ela agitava no ar, como se estivesse negando algo, pois sua boca, silenciosamente, repetia sem parar “não, não, não”…

Frente de Onda e Déjà Vu

A vida cotidiana é o veneno que se encarrega de envelhecer e enfim matar as pessoas. Ao menos Milton Steinberg pensava assim, quando, pela terceira vez naquela semana, despertou de mau humor, comeu alguma coisa, se banhou e vestiu, pegou a pasta tiracolo, pendurou no ombro, e saiu para trabalhar, as seis, como de costume. Brasileiro invulgar, não tinha a faculdade comum aos seus compatriotas de rirem no caos, e certamente devia ser julgado extremamente mal por isso, cercado de gente que ria enquanto era tratada como escrava por seus servidores públicos, administradores e pela comunidade economicamente dominante, de um modo geral. Não que Milton não sorrisse. Sorria quando via um azul perfeito no céu, ou algum raro ato de bravura ou bondade na rua. Mas em geral apenas enxergava pessoas fingindo que o que elas estavam fazendo tinha alguma relevância. Não tinha. Filósofo de quinta categoria, Milton sabia que sob o ponto de vista da eternidade, nada era perene, tudo se dissolveria no tempo e no espaço, ninguém seria lembrado por absolutamente nada do que fez, as pessoas mais famosas da mídia ou da história um dia, mesmo que levasse cem mil anos, seriam completamente esquecidas, e nada do que foi feito teria valor em si, a não ser como uma infindável corrente de repetição, nascer, viver, morrer para outros nascerem, viverem e morrerem depois. Certamente essa linha de raciocínio foi uma das precondições causadoras do que estava por vir. Ela o assaltava vez em quando, especialmente quando seguia para o trabalho na lata de conserva superlotada que as pessoas chamavam de trem, indo de Madureira para o Centro do Rio de Janeiro, e ainda mais especialmente quando seus olhos captavam algo estranhamente fugidio, um dos diversos pequenos eventos repetitivos que preenchem as vidas das pessoas, como por exemplo, um lampejo de luz na cúpula de vidro de um templo religioso qualquer, que teimava em fulgir justo nos seus olhos, quando passava por ali de trem. Naquele dia o evento se repetiu justamente quanto Steinberg matutava sobre sua filosofia barata e desanimadora (ao menos ele pensava assim), sobre o fato incontestável de que um amontoado de gente era enlatada diariamente em um ir e vir de horas, somente para que seus filhos e netos fizessem a mesma coisa, eternamente e indignamente. Quando o raio de luz o cegou, Milton piscou e imediatamente resmungou e praguejou entre os dentes. Sempre que aquele reflexo, que não dava a mínima para existência do sujeito, lhe cegava, ele pensava que no dia seguinte estaria em outro vagão, e que não se esqueceria de pegar sua condução voltado para o lado contrário de onde vinha o reflexo. E algumas vezes cumpria mesmo o intento, mas em algum momento esquecia, ou fatos como pessoas empesteadas de perfumes, ou com rádios altos, ou mesmo um pedinte que teimava em lhe pedir o dinheiro que não tinha e o encarar de forma rancorosa quando recebia um “não”, todos esses pequenos eventos, comuns, o conduziam, como o dançarino conduz a dançarina, reposicionando-o e girando-o, um pouquinho aqui, outro tanto ali, e zap! O reflexo o pegava de novo, bem nos olhos, o relâmpago cegante! Não acontecendo todos os dias, claro, mas acontecendo muitas vezes ao ano. Como era possível? Haveria algum destino? Não, não conseguia conceber um mundo-prisão onde você só existe nele para compor um quadro já pintado, sem chance de ser outra coisa além daquilo, tão pouco, que era. A bem da verdade Steinberg talvez tivesse mais medo daquela possibilidade do que argumentos razoáveis contra a veracidade dela. Zap! Imprecações, verborragia murmurada, tinha sido pego novamente, novamente e novamente por aquele flash de luz refletida na cúpula de vidro do templo. E por causa do pedinte, de novo, que por sua vez só entrou no mesmo vagão que ele por conta de ele ter ajudado outra pessoa perdida a achar seu caminho ao parar para dar uma informação e perder seu ônibus das seis e quinze que o levaria até a estação de trem, e, provavelmente ele só teve que parar para dar informação por ter feito um caminho mais longo para se desviar daquela mulher que morava na rua ao lado e que se achava a garota mais bonita do mundo e para o ego da qual ele não queria dar alimento a custa dela perceber que ele a achava mesmo muito bonita, enfim… E foi aqui que o cerne da ideia surgiu… Essas coisas se repetiam, não todos os dias, ele sabia, lia sobre essas coisas, sabia da incerteza quântica e etc, que alguns diziam nada ter haver com o mundo macroscópico em que vivemos, e se restringir ao nível atômico, mas ele duvidava muito disso, as incertezas é que mantinham os dias ligeiramente diferentes uns dos outros, pensava ele. Qualquer dia iria perguntar sobre esta sua teoria ao seu amigo físico, Rubens Castilho Lewroy, o velho Binho Cranião, Lewroy Cabeção, gênio do colégio e que trabalhava agora na Urca, naquele laboratório do governo. Iria sim, perguntar a ele. Um dia. Desceu do trem, na Central do Brasil, aquele monumento ao fato de que se trabalho dignificasse, aquele lugar naturalmente transpiraria dignidade, e não ruína política e social. Milton evitou uns menores provavelmente embebidos em crack e mal intencionados, driblou um camelô vociferante vendendo guarda-chuvas abertamente e celulares roubados mais discretamente, esquivou-se de motoristas que achavam que, nos sinais de trânsito, os pedestres é que deveriam dar passagem aos carros, e, enfim, descobriu que o ônibus que costumava pegar para o último trecho da viagem já havia partido antes do horário, então ele voltou à Central e, soterrando-se em outro transporte público, caiu no metrô que o esmagou novamente e o regurgitou na estação Carioca, de onde Milton emergiu como quem vê pela primeira vez, depois de décadas de trevas, os raios do Sol. Desanimado, pediu um café na cafeteria da esquina. Dona Glória (estava escrito no crachá dela), a atendente, com sua pele castanha e seu sorriso branco, lhe entregou o café preto e fumegante. O homem sorriu gentilmente para a graciosa senhora, em agradecimento, ajeitou a pasta tiracolo no ombro para poder pegar a xícara, olhou para a xícara, e parou de sorrir. Sobre a superfície de ébano líquido do café, ondas concêntricas se formaram, mas não no centro da xícara, e sim espalhando-se, da área voltada para Steinberg em direção ao lado oposto, ligeiramente mais distante do peito do homem. Nada demais, a vibração de um ônibus ou dos trens subterrâneos, se não fosse o fato de que duas outras coisas desconcertantes aconteceram neste mesmo instante: primeiro Milton sentiu sua carne vibrar a partir de suas costas até seu peito, como se o que empurrou a superfície do café tivesse passado por dentro dele próprio; e segundo, Steinberg teve a clara certeza de que tudo aquilo que estava vivendo já havia acontecido antes. Não a sensação vaga de um déjà vu, mas a certeza factual de que tudo estava se repetindo, não a mera e massacrante rotina cotidiana, mas de fato, de verdade, ele estava preso, horrivelmente preso, em um mesmo dia que, com algumas variações, era eternamente o mesmo. Não sabia como sabia daquilo, apenas sabia, como sabia seu próprio nome ou o que era uma xícara. À volta de Steinberg as pessoas pareciam vagamente incomodadas. Sim, muitas pareciam desconcertadas, ele achava, mas rapidamente voltaram aos seus afazeres. Elas haviam tido um déjà vu, mas Milton havia sido o único, por alguma razão incompreensível para ele, que sabia o fato de aquele ser o único dia que existiria para sempre. Olhou para trás de si. Ponderou. Sacou o celular para avisar que não iria trabalhar, e logo depois era engolido pelo metrô novamente. Era hora de conversar com o Rubens.

Continue a ler este livro agora:  

C7i e-Book.

Compre a Versão eBook

C7i Impresso.

Compre a Versão Impresso


Tags
7 years ago

Pelo Vale das Sombras [ C7i ]

Capa do Livro

Livro novo chegando. E quem é assinante da minha lista de e-mails em: http://bit.ly/2x8KzyJ já recebeu e está lendo, antes de todo mundo, um PDF exclusivo com a esta capa e os primeiros capítulos do novo livro que já está à venda na Amazon (e-book) e no Clube de Autores (impresso). Se inscreve lá você também, vai ser muito bom poder mandar presentes assim para seu e-mail. 

Leia Agora o Capítulo 1 deste novo livro:

Nevoeiro e Obelisco

Desta vez foi Milena quem — assim pareceu a Borges — resmungou um palavrão. Algo como um sonoro “que merda”. Eles estavam espremidos um contra o outro, tentando se mexer no escuro, iluminados apenas pelas luzes de seus trajes, sob um monte daquelas anteparas orgânicas que os protegeram da explosão e da subsequente avalanche. Os dois pareciam marionetes cujos cordões se enlaçaram e arrebentaram, fazendo os bonecos caírem em caos, Ramirez sobre Guilherme. — O que foi que você falou, Milena? — Fui lerda! Eu fui a porcaria de uma lerda! Quase matei nós dois. Estou furiosa comigo! Borges bufou, e respondeu: — Eu e você adivinhamos o que o monstrinho alienígena queria dizer, e nos safamos. Para de se tratar como uma super-heroína. Você é só humana, Milena! Mas, por outro lado, tudo bem, continue cuidando de mim, garota! Milena não respondeu. Borges então disse: — E você não vai mesmo me deixar na mão nunca, não é? Nem que eu merecesse me foder... isso é algum trauma, Ramirez? Perdeu alguma menininha numa investigação, enquanto era policial, e agora quer salvar o mundo? — Deixa pra lá, Guilherme. Após um momento, uma fagulha de temor surgiu na voz do bioquímico quando ele perguntou: — Isso foi algum tipo de... Ordem? Silêncio. E com um resmungo de desconforto, o homem mudou, enfim, a direção da conversa: — Olha, mesmo com as plantas-anteparos, se não fossem nossos trajes a explosão tinha rasgado a gente ao meio, ou pelo menos torcido nosso pescoço, feito galinhas num abatedouro! — Cruzes, que imagem horrível. Eu não consigo achar um ponto de apoio, Guilherme. — Ok, deixa eu ver se consigo virar… peraí… ugh… tira a perna... que porra! ... — Ele girava o máximo que conseguia o próprio tronco. Algo cedeu! Abruptamente eles afundaram mais nos escombros, enquanto tentavam segurar um no outro, a beira do pânico.

Para sorte de Guilherme a nova avalanche parou um segundo antes dele soltar um indigno grito quase histérico de terror, que chegou a lhe subir pela garganta, e se esboçar no rosto do sujeito.

— F-foi outra explosão? — Disse ele, ofegante e em evidente exaspero, logo que tudo se aquietou.

— Não. Nossos auriculares externos, assim como nossos alto-falantes externos, continuam ligados, reparou? Nós teríamos escutado o estrondo, mesmo que distorcido pela atmosfera estranha dos ammons.

Por um instante que pareceu alongar-se dali até se perder na escuridão que os cercava, Borges ficou olhando para o rosto de Ramirez, iluminado pelas luzes internas do capacete. Já ela, por sua vez, lançava a vista para trás, por sobre o próprio ombro, olhos arregalados e boca tensa, como quem espera que algo salte da escuridão sobre suas costas. Guilherme engolia em seco quando, de repente, Milena voltou o rosto para baixo, primeiro para dentro do próprio capacete e seus mostradores internos, e depois para o parceiro, e emendou em um quase sussurro:

— Estamos inclinados aproximadamente vinte e cinco graus, na direção dos nossos pés, a colina toda não ruiu, mas tá cedendo, e ainda estamos escorregando. Bem devagar, mas estamos, e o entulho tá pressionando um pouco mais.

Borges apurou os ouvidos, e lá estava o sutil chiado que os captadores externos de seu capacete lhe traziam. Era o som da placa vegetal, contra a qual estava deitado de costas, raspando nos escombros, enquanto a situação se agravava. Na verdade, de toda parte vinha um ranger abafado, mas forte, que ao sujeito parecia o ranger de dentes imensos, rilhando-se uns nos outros, mastigando-o, afligindo-o.

Com o peito oprimido, provavelmente por conta de seu traje estar decidindo quais músculos artificiais flexionar para protegê-lo da nova situação, Guilherme Borges, ainda mais sem fôlego, resmungou, desconexo, enquanto começava a se contorcer:

— Sair… agh! Porra!

— Sim, Guilherme, — respondeu Milena, a voz surpreendentemente mansa, enquanto olhava-o nos olhos e segurava, da melhor forma que podia, o parceiro no lugar — precisamos sair daqui, antes que a gente afunde de vez, mas com cuidado! Me dá suas mãos, estamos praticamente de frente um pro outro, acho que não vai ser difícil...

Ainda assim, mesmo com a posição favorável, não foi fácil, mas acabaram por conseguir, deram-se as mãos, seus dedos se entrelaçaram, e Milena falou novamente:

— Isso, obrigada. Agora ordene que seu traje enrijeça completamente. É possível fazer isso, eu vi nas memórias implantadas, confere aí e faz isso, por favor, eu preciso de uma base firme pra tirar a gente daqui, e vai ter que ser você, que não tá exatamente firme, mas é o melhor que nós temos.

Sem hesitar Borges fez o que sua parceira pediu, e comandou seu traje para que este enrijecesse. Logo a seguir o sujeito sentiu a pressão da força que a parceira fazia sobre ele. Milena estava usando Guilherme como apoio, para forçar os próprios músculos, e as equivalentes fibras artificiais do traje dela, a empurrarem os sedimentos que estavam acima de si, e sobre ambos. Entre os dentes, enquanto ela fazia toda a força que podia, a jovem mulher foi explicando:

— O traje… me diz… que a saída daqui… está… na direção… das minhas costas.

— Sonar. Você tá usando sonar?

— O giroscópio e o sonar... sim, o traje possui essa tecnologia… nnnng!... — O rosto moreno de Milena ganhando um tom avermelhado nas faces. — Na sua... direção, tudo sólido… um pouco mais pra... cima das... minhas costas… nããão!

Luz, tenebrosa e alienígena, mas ainda assim luz, surgiu de repente, entrando por uma fresta nos escombros, que se abria logo atrás de Ramirez. Após injetar esperança na treva em que eles estavam, a réstia de luz externa se foi, e o ranger dos escombros cresceu. De algum lugar vinha um lamento, como o de metal retorcendo, gritando, cada vez mais perto de se partir em pedaços! Mas logo o som se calou e tudo clareou de novo, e mais intensamente.

Milena soltou uma das mãos de Borges e ficou de joelhos. Às costas dela o homem enxergava fragmentos escuros saltando sobre eles, e a toda volta a luz revelava um tipo de barro esfarelado, e dezenas, centenas, milhares talvez, de placas vegetais com pontas esgarçadas, pequenas e muito grandes, tudo se movendo. Era o que sobrou da vegetação e da camada superior da colina, esfregando-se e raspando-se umas sobre as outras, em um desmoronar lento e inexorável.

— Vem Guilherme, rápido! Precisamos ficar em cima desta placa aqui, olha aqui, esta aqui!

Ramirez apontava e puxava o parceiro, que então reagiu e destravou os músculos artificiais de seu traje. Juntos conseguiram sair de onde estavam e montar em um grande pedaço plano de escombro que descia por sobre o restante. Um momento depois eram os dois agentes que deslizaram e, enfim, se firmaram com as solas de suas botas no chão do ninho ammonita.

Assim que saiu do abraço mortal dos escombros e tocou o piso livre de destroços, Borges deus uns pulinhos e ergueu os braços, em uma quase

dancinha da alegria

, contendo uns gritos extasiados. Depois fingiu estar alongando músculos doloridos:

— Ah, esses braceletes tinham que nos manter inteiros! Tô todo dormente! Essas merdas inúteis será que estragaram?

Ao contrário do colega, assim que tocou o chão Ramirez se manteve agachada. Com o rosto se movendo de um lado ao outro, seus olhos transformados em riscas azuis. A agente rastreava a escuridão.

— Altera o modo de visão do seu capacete para infravermelho. — Ela sussurrou para o companheiro, em raro tom autoritário — E desativa os falantes externos.

A treva total de dentro dos escombros fez parecer aos humanos, em um primeiro momento, que o lado de fora era muito mais luminoso, mas na verdade o entorno dos dois humanos era uma mistura daquele tom vermelho escuro soturno e nevoento da atmosfera dos ammons. E a luminosidade estava reduzindo ainda mais. Aos poucos tomava conta do lugar um negrume profundo, embora não impenetrável, com nuances arroxeadas, e que parecia vir escorrendo do longínquo teto da caverna que é o interior da nave ammonita. Essa penumbra fosca e lúgubre parecia mais que a ausência de luz, era como se fosse algo real, feito óleo queimado e pegajoso. Mas não era. Aquilo era a noite viscosa, úmida e glacial do ninho ammon, turva e aparentemente solitária até onde a vista alcançava. No entanto, assim que mudou os receptores visuais de seu capacete para o infravermelho, conforme sua parceira lhe disse que fizesse, Guilherme Borges se surpreendeu!

Havia como que pirilampos incandescentes para todo lado, feito riscos de luz e estrelas cadentes cruzando o ar, e uma miríade de outras formas vagamente fluorescentes, que ora surgiam, ora eram eclipsadas, oscilando por todo lado. Mesmo ele, sujeito pragmático, especialmente quando sua vida estava em risco, não pôde deixar de ver certa beleza naquelas riscas serpenteantes que pareciam ficar fosforescentes em infravermelho. Bem perto deles, diversos filetes verticais de luz esmaecida vibravam, coleantes. Essas listras de fogo-fátuo seguiam padrões, que se tornavam mais perceptíveis conforme se olhava para eles, como se brilhassem, um conjunto aqui, outro acolá, cada grupo parecendo estar aderido em diversas superfícies alongadas.

Normalmente Borges atiraria primeiro, mas será que algo bonito assim tinha que ser realmente perigoso?

Talvez por perceber a expressão dos olhos de Guilherme, ou talvez por adivinhar mesmo seus pensamentos, por causa de alguma dessas intuições que as mulheres têm, Ramirez falou, pelo rádio dos trajes:

— Estamos em perigo, cercados! Está mais escuro, deve ser noite ou estão enchendo a região de algum gás escuro. Mas esses riscos serpenteantes, eu tenho certeza, são ammons. Eu não sei te explicar como eu sei, mas eu sei. Esses caras não são nossos amigos, Guilherme.

Próximos o suficiente para serem vistos com luz normal, e estando Borges agora atento aos mínimos movimentos do inimigo, o agente logo fixou olhar em um daqueles seres em forma de verme, que trazia consigo uma daquelas tabuletas deles, igual àquela que o primeiro ammon começou a usar para comunicar o que queria dizer aos humanos.

— O tablet, Milena. — Disse Borges, indicando com um movimento dos olhos o aparelho que um dos ammons carregava. — Posso inferir a língua deles com aquilo.

Dado o tamanho e os vapores sulfurosos que aqueles valentões que os estavam cercando soltavam agora, a resposta de Milena foi:

— Esquece, Guilherme, a situação não está pra papo...

A prioridade agora era, prosaicamente, ele e Milena saírem dali vivos. Entendido.

— Venha, recue. — Depois de empurrar o parceiro mais para trás de si, Milena estava, Borges percebeu, plantando a postura de base que costumava tomar quando estava prestes a partir pra porrada. Foi quando os terrestres viram os ammon-v, as colossais criaturas que acolhiam os ammons-a, aqueles mais inteligentes e vermiformes, dentro de si. Ammon, sem a letra final, era o nome usado genericamente para descrever um ou ambos os tipos.

Boquiabertos, os humanos recebiam dentro de seus capacetes a informação de que aqueles vultos colossais, cujos corpos quase humanoides e imensos rasgavam agora o nevoeiro, feito montanhas com dezenas de metros de altura brotando e dissipando parte da escuridão. Os ammon-v estavam há cerca de trezentos metros de distância e se aproximando, circulando pela área onde ocorrera a explosão. Alguns dos monstros gigantes pareciam agarrar coisas no chão e enfiá-las nas bocarras.

— Caralhôôô... p-precisamos sair daqui... — Murmurou o homem da Terra, e então, voltando-se para sua companheira, gritou: — Milena!

O primeiro dos ammons-a que cercavam os terrestres atacou, atirando-se sobre os humanos. Mas Milena simplesmente o empurrou para longe com uma pancada dada com seu ombro que atingiu, certeira, o flanco do alienígena agressor. Vendo o companheiro rolar pelo chão, se contorcendo, os outros ammons pareceram, aos olhos de Guilherme Borges, gritar por suas fendas de sintetização de compostos químicos, borbulhando líquidos rubros e alaranjados, e evaporando rolos espessos e cinzentos de fumaça por estes orifícios.

Aquele ammon que possuía o tablet alienígena estava muito mais calmo, e exibiu o aparelho que carregava, erguendo-o no ar, e nele havia a representação gráfica de dois bonecos humanoides que, submissos, deitavam-se no chão, repetidas vezes, e eram cercados pelo que só poderia ser um bando de ammons.

— Nem pensar, bonitão! — Disse Guilherme. — Não me entrego fácil assim não.

Sem aviso, um dos ammons mais próximo cuspiu sobre os agentes um líquido que se espalhou como uma névoa fina e grudenta, e encharcou os terrestres. Imediatamente sensores e monitores dos trajes dos humanos detectaram e informaram que aquilo era um ácido muito potente. Dentro do capacete de ambos os agentes alarmes piscavam, indicando que se tomassem mais algumas rajadas daquela substância, a integridade das armaduras deles poderia ser comprometida.

Milena, como de hábito, reagiu prontamente, e partiu para cima daquele ammon que cuspiu o ácido, chutando-o com destreza e com tamanha força, que uma de suas fendas, que estava fechada, provavelmente manipulando mais ácido, estourou como um cano de vapor rompido. O ammon, engolindo o próprio veneno, desabou ao chão, entrando em convulsões, e com bolhas se formando e estourando em toda a sua grossa pele. Isso abriu uma brecha na fileira dos ammons agressores, que recuaram, aparentando pavor instintivo diante da violência do ataque da humana.

— Vem, Borges! Corre! Corre! Corre!

Guilherme Borges disparou atrás de Milena, mas, em um arroubo de coragem que nem ele mesmo entendeu, voltou atrás alguns passos e arrancou a tabuleta do ammon que estava com ela, com um puxão tão forte (mais por conta dos músculos artificiais do traje, evidentemente, do que pela um tanto franzina compleição física do bioquímico) que quase arrancou as dobras da parte do corpo onde o alienígena segurava o aparelho de comunicação. No entanto, este movimento de captura da tabuleta não lhe saiu de graça, e Borges viu um clarão e sentiu uma pressão terrível, quando algum tipo de granada de efeito moral ammonita explodiu perto dele. Seu traje resistiu, mas, devido à concussão desorientadora, Guilherme não conseguia fixar nada, e bamboleava, terrivelmente tonto. Seus olhos, duas próteses visuais artificiais muito sofisticadas, estavam captando o ambiente sem nenhuma distorção, elas não ficavam ofuscadas em praticamente nenhuma hipótese, mas o cérebro do homem, chacoalhado pela explosão, estava truncando seus sinais nervosos, e o agente terrestre rodava nos eixos, como um foguete sem giroscópio. Alguém agarrou Borges e o puxou com força. Ele, reagindo muito mais instintivamente do que racionalmente, socava o ar repetidas vezes, com a mão livre — a outra ainda agarrava obstinadamente a tabuleta alienígena —, até que a desorientação diminuiu o suficiente para Guilherme perceber que a voz de Milena dizia, dentro do seu capacete:

— Calma. Sou eu! Sou eu, Milena! Vem, corre!

E novamente Borges disparou atrás de sua companheira de missão, que o puxava. Ele chacoalhava a cabeça, enquanto seus pés faziam o possível para acompanhar o ritmo de Ramirez, que, a certa altura, empurrou o homem à frente e voltou atrás. Quando recobrou o controle, Guilherme viu Ramirez mais atrás, uns três metros antes, atracada de novo com os ammons. Os olhos do agente, já naturalmente grandes, se arregalaram. Eram muitos alienígenas contra uma só humana!

— Bracelete! — Bradou Guilherme ao sistema que carregava no pulso, cujo processador, além de potente, era dotado de inteligência, embora não de autoconsciência. No interior de seu capacete um sinal visual indicou que seu bracelete estava ouvindo, e, paralelamente a voz monocórdia do mesmo sistema disse, simplesmente:

— Sim, agente Borges?

— Quais os pontos frágeis da fisiologia ammonita? Fala rápido!

— Desconhecido. Está incapacitado de acessar seus implantes de memória?

— ... Estou, porra. Qual o calcanhar de Aquiles deles? Algum troço que fira ou irrite muito esses merdas?

— Contusões parecem os ferir normalmente, quase como a um humano em seu habitat normal.

— Veneno! Veneno? Pode sintetizar algum catalisador… não, claro que não. Espere. Queimar! Você pode fazer o hidrogênio desta atmosfera incendiar? Aqui tem muito hidrogênio! Pode gerar o oxidante, bracelete?

Ali perto Ramirez desviou de uma nova rajada de ácido, agarrou um ammon e o arremessou sobre os outros, bem a tempo de se agachar, curvada sobre si mesma, feito uma concha se fechando, e ser atingida por outra bomba de concussão, que Borges viu sendo cuspida por um dos outros ammons.

— Liberando oxigênio do seu tanque, e depois provocando a explosão, podemos queimar parte do hidrogênio pressurizado desta atmosfera.

Borges desviou o olhar do próprio antebraço, onde estava o bracelete, até a cena onde sua parceira se ergueu e voltou a brigar ferozmente com os ammons, mas era visível que, pouco a pouco, Milena perdia terreno, e logo seria dominada, pois eles eram vários ammons atacando-a, e a cada instante pareciam chegar mais e mais deles. E, pior, quando pegassem Ramirez, viriam atrás de Guilherme!

— Ah, sem chance! — Disse ele em voz alta, respondendo à sua própria conclusão. E, rapidamente, para o próprio pulso, questionou: — Bracelete, nossos trajes podem aguentar a combustão?

Após uma fração de segundo, que a VRP do bracelete levou fazendo intrincados cálculos cujas equações zuniram em uma janela de dados projetada dentro do capacete do agente, e durante o qual, certamente, decisões táticas foram consideradas, sobre se o percentual de risco da ação solicitada era válido para se completar a atual missão dos agentes, veio a resposta:

— Uma liberação controlada de cerca de três vírgula setenta e quatro por cento do oxigênio concentrado no gel do tanque do seu traje deve ocasionar uma detonação controlada, suportável por suas blindagens.

— Os ammons se ferram? O oxigênio que me resta vai me manter vivo por quanto tempo?

A inteligência do bracelete de Borges entendeu facilmente quais eram as duas perguntas, pois respondeu de pronto:

— Os ammons próximos devem sofrer ferimentos consideráveis. O oxigênio restante ainda deve permitir a sobrevivência do usuário por pouco menos de uma semana da Terra, se a média intensa de consumo continuar a mesma.

Era uma margem muito boa. Guilherme já corria em direção à Milena, enquanto ordenava ao seu bracelete:

— Comece a liberar o oxigênio! Provoque a ignição quando eu gritar… sei lá… queimar! Não, caralho, queimar não. Porra, o que?... Já sei, foda-se, ouviu bracelete? Assim que eu gritar foda-se!

— Iniciando liberação do oxigênio. Palavra-chave ignitora: foda-se. — foi a resposta, sem nenhuma entonação emocional, do bracelete de Borges.

E assim Guilherme passou correndo entre Milena e seus agressores, vendo apenas os olhos cor de anil arregalados da mulher, que não deve ter entendido o que Borges fazia ali, correndo feito um garoto desajeitado, gritando coisas desconexas, bem no meio da pancadaria. Ele deu a volta, fintando o melhor que pôde os ammons, feito um jogador de futebol americano mais sortudo do que realmente competente, livrando-se de dois, três, e sendo derrubado pelo quarto dos alienígenas, que se ergueu sobre o terrestre como um urso enorme prestes a esmagar o humano. Mas, para piorar, este urso infernal respingava ácido.

— Guilherme! — Gritou Milena, apavorada, pois estava longe demais para acudi-lo.

— Fo-da-seeee! — Evidentemente que não era preciso gritar, muito menos enfatizar a palavra silabicamente, mas ele gritou assim mesmo, deste jeito, e tão alto que sua cabeça, seus dentes, e até mesmo os seus olhos pareceram vibrar.

Em resposta, quase imediatamente, do ponto onde o bracelete de Borges emergia do punho do seu traje, um diminuto pedaço deste mesmo bracelete se projetou, alongando-se, e emitiu uma pequenina fagulha. Uma serpente de fogo surgiu em um instante, e tudo explodiu em luz e chamas, parecendo a quem estava ali próximo que o mundo inteiro havia sido convertido em labaredas radiantes!

Mas como o oxidante essencial daquela ignição era o oxigênio, e ele se esgotou rapidamente, a combustão também foi razoavelmente curta, embora sua temperatura tenha sido bastante alta.

Logo depois da explosão, os terrestres se viram no meio de cinco ou seis ammons, que estavam com grandes trechos de suas peles enegrecidos e quebradiços, e que se debatiam no chão, ferindo-se ainda mais. O restante dos atacantes alienígenas corria para longe. Milena estava de pé e girando lentamente, enquanto murmurava, com olhos tristonhos e a voz embargada:

— Oh, estão feridos… estão agonizando… não sei o que fazer… estão sofrendo, coitados… o que eu faço?... Estão sofrendo... agonizando...

— Oxigênio, eu explodi tudo! Corre, Milena, porra! Pra merda esses bichos!

E desta vez foi ela quem obedeceu, tomando ligeiro susto a princípio, ao ser subitamente puxada pelo parceiro, mas agindo logo a seguir, sem titubear, e correndo atrás de Borges.

Juntos, os humanos dispararam nevoeiro adentro, enxergando apenas através dos sonares de seus trajes. Eles nunca correram de fato assim, quase às cegas, apenas com os capacetes desenhando o melhor possível — visto a alta velocidade com que o aparelho tinha que produzir tais imagens — os obstáculos, encobertos pelo espesso nevoeiro da atmosfera ammonita, no desconhecido e potencialmente fatal caminho à frente. Mais uma vez, eram as memórias de treinamento implantadas em seus cérebros que lhes vinham em socorro. Eles se recordavam de simular em treinamento aquela situação extrema. Rememoravam tais lembranças quando ativamente solicitadas, ou quando a adrenalina inundava seus corpos, o que era exatamente o caso naquele instante.

Correram com o sangue trovejando nas veias, sem olhar para trás, olhos arregalados, mas sem conseguir ver, de fato, por onde corriam. Uma interminável disparada para o que poderia ser a salvação ou para o abraço trevoso de seus inimigos, ou de outros terrores ainda desconhecidos e ainda piores naquele mundo sombrio. E como que para sublinhar essa agonia, sem o menor aviso, dentro de toda aquela escuridão, Milena e Borges foram engolidos por um tipo de mata densa. Grande quantidade de chicotes, enraizados no chão e estendendo suas longas e delgadas hastes cinzento-arroxeadas para o alto, começou a chibatar os terrestres por todos os lados, quase os fazendo tropeçar.

Mas, passado o susto inicial, quando pararam de correr e chegaram mesmo a retroceder alguns passos, os humanos começaram a avaliar o lugar que os cercava agora. As folhas do mato eram longas, quase lhes chegando à altura das cabeças, e eram grossas, mas também relativamente largas, e bordejadas de cílios que se agitavam como pequeninas larvas. Breves varreduras com os sensores de seus trajes, e lançamentos fortuitos de seixos e gravetos em torno de si, mais para o meio daquilo que parecia ser grama alta, foi o máximo de testes que conseguiram fazer. De resto, concordaram em uma breve conversa, era torcer para que o matagal alienígena fosse seguro, não havia como procurar outro esconderijo.

Entraram juntos, e ao se abrigarem mais lá para dentro da exótica vegetação, agachados sob a cobertura que ela lhes proporcionava, descobriram as estruturas. Eram montículos perfeitamente organizados de coisas. A maioria fragmentos sortidos da sociedade humana, tais como bolas de bilhar, dados de jogo, tablets de pulso, bijuterias, talheres quebrados, tubos de cremes vazios, e etc.

— Que aparelho é este? — Fez Milena, apontando, sem tocar, para um pedaço retangular de algo composto por plástico, metal, e um monte de corrosão.

— Um tipo de tablet do passado. Ah, tá sujo, arranhado, cheio de bagulho em cima, mas você já deve ter visto em filmes bem antigos, não? — Respondeu Borges, entre os dentes. — Creio que se chamava smartphone, mas o negócio era tão esperto quanto uma ameba amestrada, na verdade.

— É mesmo, Guilherme, verdade, tinha esquecido, um smartphone, olha só... ainda mal sonhavam com o amplo uso da optotrônica e memluztores nesta época. Olha lá, mais montes de coisas! Tem desses... totens em todos os lugares, espalhados pelo mato.

— Totens. Bom nome. Ok. Vamos dar uma olhada naquele lá.

Acabaram encontrando outros totens, em menor número se comparados com os montículos de objetos terrestres, que exibiam apetrechos ininteligíveis. A maioria parecendo já muito gasta pelo tempo também. Os terrestres foram investigar um desses amontoados peculiares.

— Aposto, Milena, que isso vem de outras culturas, sem ser a nossa. O que será isso ali, ó? Tá vendo? Parece uma série de recipientes de vidro que brotaram uns dentro dos outros. Vê as enervações? Será uma garrafa de uísque de outro mundo? Ou algum tipo de flor inflada e cristalizada? Um crânio? Um tipo de casco ou unha bulbosa? Fascinante, né não? Bom a gente não tocar em porra nenhuma dessas merdas...

Milena torceu o nariz, mas aquiesceu, silenciosa e parecendo um tanto assombrada, olhando em volta. Ambos resolveram explorar um pouco mais além, e confirmaram que os totens ammonitas, de fato, se espalhavam por todo o matagal alienígena, montículos de histórias humanas ou não, imersos entre um mar dessa grama estranha e alta. Guilherme Borges continuou:

— Reparou uma certa regularidade nesses totens? Isso aqui deve ser algum tipo de arquivo de referência, acho, para pequenos objetos talvez (imagina o arquivo pra coisas maiores!). Vai ver que esse matagal é alguma base de dados, ou mostruário.

— Acha que isso pode nos comprometer? — Quis saber Ramirez, atenta agora. — O próprio matagal pode nos sentir, ou alguma coisa assim, e nos expor aos ammons?

— Até agora tudo bem. Vamos torcer para que isso aqui seja um tipo de arquivo morto.

Voltavam para próximo do ponto onde eles entraram no matagal, quando Milena os fez parar, dizendo:

— Não temos localização por satélite aqui, só temos um o traje do outro como referência, então até podemos nos perder, mas eu posso apostar que aquele monte ali é onde encontramos o smartphone... E esse totem, que estava sozinho, não tá mais...

Guilherme, que vinha logo atrás da mulher, e começava a se entreter com o tablet que tirou do ammon, levantou a vista quando a parceira o parou, e estremeceu com o que viu, recuando um passo, arregalando os olhos, e dizendo:

— Porra! Não, esse troço não tava aí!

Ao lado do monte de coisas humanas, havia um obelisco de ébano, com uns dois ou três metros de altura, Borges nem atinou usar os sensores de seu traje para lhe dar medida exata. Milena, no entanto, ergueu o pulso onde podia manipular diretamente o teclado projetado de seu bracelete de dados, e iniciou uma sondagem. Após um momento, balançou a cabeça, e murmurou:

— Os feixes dos sensores encontram esse negócio, mas parece que resvalam nele, não dão resultado positivo nem para a distância que ele está de nós.

— Mas... ele tá bem ali, na nossa frente.

— Eu sei, mas nossos sensores não concordam com nossos olhos.

Aproximaram-se cautelosamente do obelisco, e de fato conseguiram chegar rapidamente perto de algo que seus sensores não conseguiam definir bem se estava dois metros à frente, ou adiante alguns quilômetros.

Os agentes rodearam o objeto, e em vários momentos relataram, um ao outro, sensações de vertigem ao olharem para as superfícies laterais do obelisco a partir das suas arestas.

— Eu vejo que a superfície é relativamente curta, uns cinquenta centímetros, talvez. — Murmurava Guilherme. — Mas meu cérebro insiste em me fazer sentir como se eu estivesse olhando a beira de um abismo fundo pra caralho... que merda...

Milena fez menção de tocar uma das faces do obelisco, mas Borges a impediu, ao que ela foi dizendo:

— Calma, eu não pretendia tocar. Queria apenas sentir se há algum tipo de aura, ou força em torno dele, que deixe a gente enjoado assim.

— Basta não olhar pelos cantos dele. Tem que encarar esse troço de frente, e pronto. Pelo menos nossos sensores indicam que não há radiação letal aqui.

Depois de atirar pedrinhas no obelisco, tocá-lo com hastes da grama, e aspergir um pouco do granulado solo daquele lugar nele, finalmente os dois tocaram, com suas mãos enluvadas, naquela superfície absolutamente negra, e deslizaram os dedos sobre ela.

— É como tocar... vidro... vidro ligeiramente amolecido... — disse Borges, buscando, uma a uma, as palavras.

— Pra mim, apesar de estar usando luvas agora, me lembra a sensação de tocar a pele de uma orca, quando ela nada com intensidade, com fúria.

Guilherme Borges ficou olhando para a parceira, a mão ainda tocando o objeto alienígena, e depois de um momento, ele sorriu, e disse:

— Tá de sacanagem, Milena?

— Como?

— Você já tocou numa baleia assassina furiosa?

A mulher sorriu, torceu o nariz por um segundo, seus olhos azuis luzindo em contraste com sua pele de bronze. Enfim retrucou, simplesmente:

— Islândia. E a raiva não era por minha causa.

Ficaram ali, observando o objeto por mais algum tempo, mas, apesar dos totens estranhos e perturbadores, e do recém-descoberto obelisco enigmático, nada de verdadeiramente ruim aconteceu aos humanos, enquanto se escondiam naquele matagal, e eles puderam, enfim, encontrar uma pequena e bem camuflada clareira, e recuperar o fôlego ali.

Minutos depois de se refugiarem nesta clareira, Guilherme, que havia se sentado e recomeçado a mexer na tabuleta de dados ammonita, percebeu que Milena estava cabisbaixa. Não havia como ficar de pé sem aparecer acima do matagal, então Ramirez estava de cócoras. Seus olhos estavam fitos no chão, como se buscasse ouvir algo distante, ou como se estivesse perdida em reminiscências.

Apesar de soltar um resmungo contrafeito, Borges se levantou e, também se movendo abaixado, foi até Milena, pegou a parceira gentilmente pelo pulso, e disse:

— Obrigado por nos manter vivos mais uma vez, Ramirez.

Ela ergueu seu rosto de traços delicados, com seus grandes olhos brilhando, úmidos e respondeu:

— Você nos salvou, usando seu oxigênio para explodir eles. Eu que tenho que te agradecer, obrigada. E... obrigada por tentar me animar, mas… eu queria ser melhor em curar do que em ferir, Guilherme. Queria muito isso.

Ele ficou olhando para ela longamente. Milena, ainda transpirando tristeza, se afastou um pouco e se ergueu, furtiva, espiando por sobre o mato. E entrou nele, dizendo:

— Vou até a borda do matagal, volto já.

E, depois de um tempo, Borges disse, para si mesmo:

— Meu oxigênio...  — E o agente terrestre sentiu, de repente, um medo profundo e inexplicável. Por um instante fugaz Guilherme soube que aquilo que fez, queimando seu oxigênio, iria pôr ideias na cabeça de sua parceira, que era propensa a heroísmos. Ideias muito perigosas. Mas como vieram, aqueles pensamentos subitamente se foram. Sobrando apenas uma vaga angústia.

Continua...

VRP: (Virtual Reality People): Toda e qualquer Inteligência Artificial (I.A.), pois todas são baseadas em um mesmo sistema algorítmico, conhecido como Vínculo Matriz-Conceito de Maia (Maia - 2010), ou Algoritmo de Maia. Uma VRP é uma "pessoa sintética", que pode ter as mesmas capacidades intelectuais de um humano, ou ser muito superior, intelectualmente, a este. Uma VRP ainda pode existir somente como um software dentro da VRnet, ou ter toda uma estrutura de hardware, que pode ser um poderoso computador quântico ou um optotrônico EpChip (Encefaloprocessadores Matriciais). Por força de Lei Constitucional Mundial, toda VRP deve ter seus algoritmos (o essencial Algoritmo de Maia e todos os paralelos) dependentes do Algoritmo Ozimov, que é uma técnica que consiste em um algoritmo de aprendizagem de máquina, cuja função abstracional está focada na identificação de contexto de situações decisórias da Inteligência Artificial na qual está implantado, sopesando tais decisões de acordo com três critérios a saber: quanto bem causa, quanto mal causa, e quanta justiça gera. Como os instintos mais básicos e inescapáveis do ser humano, numa VRP o Algoritmo Ozimov está na raiz de cada decisão e recorre a um banco de dados de situações éticas básico, mas amplo, que, no entanto, vai crescendo de acordo com a vivência da máquina. Ou seja, a máquina não toma nenhuma atitude sem que esta passe primeiro pelo Algoritmo Ozimov (isso está garantido tanto por estruturas de software quando de hardware dedicado ou não, e está previsto em cláusula da Constituição Mundial como de uso obrigatório, sendo crime gravíssimo a fabricação de robôs sem essa salvaguarda. Vale notar que, não raro, a Agência Código 7 usa VRPs de vários tipos, de robôs a softwares, sem ou com uma versão o Algoritmo Ozimov modificada, que permite, por exemplo, que seus robôs de segurança portem armas mortais e façam uso delas), e quanto mais atitudes éticas a máquina sopesa e compreende, mais refinado fica o algoritmo. O nome do algoritmo é a pronúncia do sobrenome em russo do bioquímico e escritor de ficção científica Isaac Asimov, criador de contos e romances protagonizados por robôs que seguiam fundamentalmente as Leis da Robótica [http://pt.wikipedia.org/wiki/Leis_da_Robótica], de sua autoria e que serviram de inspiração para toda uma vertente da engenharia robótica voltada a criação de Inteligências Artificiais dotadas de comportamento ético, culminando no pequeno e rudimentar robô chamado de Nao, da Aldebaran Robotics (http://www.aldebaran-robotics.com/), no ano de 2010, que foi a primeira máquina dotada de princípios éticos [Revista Scientific American Brasil, Ano 8, Número 102, Novembro de 2010], e, em meados do século seguinte, na criação e aprimoramento do Algoritmo Ozimov e de sua técnica de aplicação.

Optotrônica: no universo C7i os aparelhos como computadores e sistemas em geral não são mais baseados em eletrônica, ou seja, em semicondutores elétricos, mas em sua integralidade a tecnologia de informação de C7i é composta por equipamentos semicondutores de luz. Assim como a eletrônica de um aparelho são seus componentes semicondutores de elétrons, a optotrônica de um aparelho em C7i são seus componentes semicondutores de luz. Já a optoeletrônica, como a conhecemos hoje e que é ancestral da optotrônica de C7i, é o estudo e aplicação de aparelhos eletrônicos que fornecem, detectam e controlam luz, normalmente considerada um subcampo da fotônica. Nesse contexto, luz frequentemente inclui formas invisíveis de radiação como raios gama, raios-X, ultravioleta e infravermelho, em adição à luz visível. Aparelhos optoeletrônicos são transdutores “elétrico para ótico” ou “ótico para elétrico”, ou instrumentos que usam tais aparelhos em sua operação. Eletro-óptica é frequentemente usada incorretamente como sinônimo, mas é, de fato, um braço mais abrangente da física que lida com todas interações entre luz e campos elétricos, quer eles formem ou não parte de um aparelho eletrônico. A optoeletrônica é baseada em efeitos quânticos da luz em materiais semicondutores, às vezes na presença de campos elétricos.

Memluztores: ou memlightstores, em C7i são componentes optotrônicos equivalentes aos atuais componentes eletrônicos chamados memristores. Um memristor seria o quarto componente eletrônico fundamental - ao lado do resistor, do capacitor e do indutor - e teria propriedades que não poderiam ser duplicadas por nenhuma combinação desses três outros componentes. A propriedade mais importante desse componente é a "memresistência", o que na prática significa que o memristor é uma memória resistiva, que não perde os dados quando a energia é desligada. Um memluztor tem capacidade semelhante, ou seja, permitem que unidades de processamento (um computador quântico, um EpChip, etc.) ou de armazenamento (botdrives, holobubbles, etc.) sejam desligados de sua fonte de energia sem perder seus conteúdos de memória. O processo envolve nanofotônica e deriva da cristalização de fótons.

Continue a ler este livro agora:  

C7i e-Book.

Compre a Versão eBook

C7i Impresso.

Compre a Versão Impresso

Clique para: Ler a Degustação do Livro 1 de C7i

Clique para: Ver a Premiação de C7i (Fotos no Facebook)


Tags
7 years ago

https://www.youtube.com/embed/OhKwbSH-xWs?feature=oembed&enablejsapi=1&origin=https://safe.txmblr.com&wmode=opaque

Nomade 7 - Episódio 1 no ar! Começou!

Sinopse: Daniel, um playboy viciado em drogas, após falhar em uma venda, é sequestrado por seus fornecedores e assassinado a sangue frio. Liz, colega de turma de Daniel, que sempre gasta uma parte considerável do seu tempo o observando, sente que algo aconteceu com ele. No dia seguinte, ele aparece na sala de aula com um comportamento diferente, o que chama a atenção de Liz. Tentando se lembrar o que aconteceu, Daniel se recorda de ter acordado nu em sua cama, com ferimentos selados que pareciam ser de bala. Confuso, ele começa a ouvir fragmentos de voz e pensa ser algum resquício do uso exagerado de drogas. Daniel passa a perceber Liz e uma conexão começa entre os dois. 

Site: http://nomade7.com.br/ Direção: Flávio Langoni. Produção: Lívia Pinaud. Roteiro: Wagner RMS & Flavio Langoni.

Premiação:

✪ Melhor Websérie - Minas Webfest 2017.✪ Melhor Roteiro - Minas Webfest 2017.✪ Melhor Fotografia - Minas Webfest 2017.✪ Finalista no Super Project do Rio WebFest 2016 - Festival Internacional de Webseries.✪ Silver Tickets Rio Webfest 2017 - participação direta no Seoul WebFest 2018 e Bilbao Webfest 2018 (Espanha).✪ Golden Ticket Rio Webfest 2017 - participação com passagem e estadia para o Roma Webfest 2018 (Itália).


Tags
8 years ago

No Futuro, No Fantástico, e No Brasil

image

A jogadora quer viver de bola; o cozinheiro, criando pratos; o piloto, voando; a guitarrista, de show em show; o advogado, de causa em causa; e escritores, feito eu, sonham em te vender livros para — nem mais, nem menos — poder pagar as contas e escrever mais, dividindo sonhos e percepções, lágrimas e risadas, contigo.

Se sobrar um pouquinho para comprar livros, ir ao cinema e viajar, tanto melhor, sem dúvida.

Mas, muito mais do que viver do ofício de divertir e emocionar pessoas, sinto que escritoras e escritores têm algo ainda maior e mais importante por fazer. Devemos te fazer aspirar… pois enquanto te embalamos num romance, ou chacoalhamos numa aventura, e te fazemos sonhar com outras vidas possíveis, outros mundos, outras histórias para além das que você conhece, te fazemos almejar por mudanças, por novidades, por coisas extraordinárias que você poderá, de algum modo só seu, tornar reais. É o sonhar que leva à aspiração, que leva à fé, que leva à ação, que leva, enfim, à realização.

Nós, que escrevemos, que contamos histórias, somos a força ignitora deste processo. Temos que ser a chama mais inicial da torrente de labaredas de um foguete chamado “você”, que te conduz rumo ao amanhã, para alcançar todo o teu potencial. E desconfio que essa tarefa de dar início aos sonhos cabe, em especial e com grande responsabilidade, àqueles que escrevem sobre o futuro e o fantástico.

Veja, se um menino norte-americano se tornou engenheiro e criou os celulares que revolucionaram nossas vidas em todo o mundo, por ser convidado a sonhar e a realizar tal feito assistindo ao capitão Kirk usar seu comunicador sem fio, em suas jornadas nas estrelas, então há poder e responsabilidade nisso!

Imagine o nosso Povo brasileiro, tão capaz de se virar e de dar seu jeito, mesmo quando tudo está contra ele, sendo mergulhado em obras nacionais que o coloquem em situações extraordinárias e desafiadoras, muito além daquilo com que nossa gente está habituada.  Imagine livros, séries e filmes nacionais que falem sobre os desafios que ainda estão por vir, ou que excedam a nossa realidade, e sobre brasileiros fazendo coisas incríveis para enfrentar essas adversidades, protagonizando grandes histórias, indo a lugares incríveis, mudando o destino da humanidade. Agora visualize nossos jovens crescendo dentro desta cultura, onde não só os estrangeiros protagonizam a ficção científica e a fantasia.

Percebe?

Quantas menininhas engenheiras nós deixamos de inspirar? Quantos moleques nutricionistas nós permitimos que nunca sonhem em liquidar com a fome no mundo? Nós somos capazes de criar inventos espetaculares, explorar mundos distantes e até universos paralelos! Podemos ser autores de feitos memoráveis! Mas precisamos ser alertados e lembrados disso, até que esteja no nosso DNA.

Mas nós ainda olhamos muito mais para trás, do que para frente no tempo. O passado é inquestionavelmente importante. Sem conhecer nossa história, não podemos evitar cometer erros por vezes seguidas, e, portanto, não podemos avançar. Mas, mesmo com autoras e autores novos se esforçando para mudar isso, nossa sociedade ainda é conduzida, em seu sonhar, por uma esmagadora quantidade de livros, filmes e novelas que nos legam passados e atualidades, geralmente dolorosos e crus, como se nossa mente coletiva e cultural afirmasse, repetidamente, que isso é o que somos, e é tudo que podemos ser. Não!

Sairíamos das cavernas, se só mirássemos o presente e o passado, e jamais pudéssemos sonhar com um futuro sem fome e doenças? O que seria da aviação sem um contador de histórias que nos legasse a fábula de advertência e desafio que é Ícaro? Sem o sonho, não há prosperidade, pois o primeiro é a semente mais essencial da segunda. Portanto precisamos nos imaginar e nos ver lá no futuro, ali no extraordinário, e mais além como protagonistas da superação e da inovação. E podemos fazer isso, capacidade não nos falta, basta crer e apostar. Eu aposto escrevendo e consumindo histórias de brasileiros protagonizando o futuro e o fantástico.

Aposte. Todos ganham.


Tags
8 years ago

Booktuber Kelly Cominoti Define Mônica!

Em poucas palavras a Srta. Kelly disse MUITO sobre a minha filha de papel Mônica (conheça em www.wagnerrms.com/monica) , além de cercar a Srta. Deveraux de outros personagens e de obras magníficas, confere aqui no vídeo! MUITO Obrigado Srta. Kelly, a senhorita arrasou, como sempre! ^_^ 


Tags
8 years ago

Maratona Literária Desencaixados

Adora ler? 

Então participe do sorteio do livro Mônica, e de muitos outros livros, na Maratona Literária Desencaixados. Acesse o evento no Facebook: 

http://bit.ly/Maratona-Desencaixados 

Conheça muuuita gente legal, um monte de obras nacionais incríveis, e divirta-se!

Bateu curiosidade? Leia um trecho de Mônica aqui no blog:

http://www.wagnerrms.com/monica

Abração,

Wagner RMS


Tags
9 years ago

Nova resenha do livro Mônica!

Não perca, e, por gentileza, divulgue bastante! Obrigadããããoooo!

Se inscreva também no Aventura na Leitura:  BLOG: http://aventurasnaleitura.wordpress.com FACEBOOK: http://facebook.com/aventurasnaleitura INSTAGRAM: @aventurasnaleitura SKOOB: http://www.skoob.com.br/usuario/406151


Tags
9 years ago

Confere aqui, novas opiniões sobre Mônica! As primeiras impressões da Srta Kelly, carismática resenhista do Aventuras na Leitura, sobre meu livro Mônica. Críticas são super bem-vindas, mas, cá entre nós, elogios também são! ;-)


Tags
9 years ago

O poder que as histórias contadas por um povo tem sobre seu próprio futuro!

Neste caso, assistir Dana Scully em Arquivo-X, uma mulher independente, de ciências, forte, inspirou muitas mulheres a seguir carreiras científicas! Espetacular isso! Espetacular! 

Sei e sinto esse poder que a ficção especulativa tem há décadas, por isso acho que temos que tem mais que comédias e obras sobre as mazelas brasileiras, precisamos urgentemente ter fortes e grandes personagens, místicos, futuristas, atuais, mas sempre inspiradores, que façam por nossa gente o que Miss Scully fez por mulheres no mundo todo. 

Em tempo, obviamente Scully é fonte de inspiração também para Mônica Alencar Deveraux (http://bit.ly/livro-Monica) também, mesmo que eu tenha apimentado mais a profissional federal brasileira, com toques de magia e sensualidade, mas Dana, com sua força, sensibilidade e intelectualidade, contribuíram, certamente.

Sugiro também o excelente texto sobre este mesmo tema: http://www.momentumsaga.com/2015/11/o-efeito-scully.html

Enfim, para estar no futuro, você precisa se imaginar nele, nunca esqueça disso. 

O Efeito Scully

O Efeito Scully

9 years ago

Colapso de Função

Mãos de pessoa caindo em buraco profundo tentam se agarrar às paredes do túnel enquanto são engolidas por escuridão.

Tudo tem seus princípios. Ele era um deles. No norte gelado, foi o deus que devolveu, ou quase devolveu, Mjölnir ao dono. No oriente antigo, foi Susanoo, quando travesso. Mas gostava mesmo das Américas ao sul, onde era moleque preto, um só pé de vento, o olhar ora astuto, ora também malévolo. Morreu de rir das gentes de carne quanto soterraram seu misticismo e, huah-hahah, descobriram, hahahah, o colapso de função de onda! A Mãe Escuridão minava de novo pra dentro do mundo deles, em bosques solitários e em cantos escuros nas cidades, e estavam todos voltando com ela. Ele agora catava as gentes em metrôs. Nunca saiu de um túnel, após a luz do vagão piscar, e a pessoa do seu lado não estava mais lá? Huah-hahahahaha 

image

Mini conto apresentado no Curso "Escreva Sua História”, de Fabio M. Barreto (www.escrevasuahistoria.com).


Tags
10 years ago

Você quer assistir sci-fi brasileiro de padrão internacional?

Primeiro assista: A websérie de Sci-Fi que mostra o SEU mundo!

Agora decida! Chegou a hora de querer, de fazer e de ter uma Ficção Científica e Fantástica SUA. Participe e faça acontecer!

Amplie este Mercado para todos nós que curtimos e produzimos Ficção Científica e Fantástica, e para que você possa assistir produções sci-fi / fantásticas que falam a sua língua e sobre a sua realidade.

E se você também produz, junte-se a nós na construção de um Mercado Criativo aquecido e forte, onde você também possa fazer seu merecido sucesso!

Clique na imagem abaixo, participe, e saiba mais sobre a websérie Nomade 7, este novo e incrível projeto do Diretor Flavio Langoni, realizador do reconhecido Onda Zero. Participe, apoie com apenas R$ 10,00 ou mais. Ou, se a grana estiver curta, divulgue bastante, faça sua parte!

Obrigadooooo!


Tags
10 years ago

The Last Days on Mars (Fansrev) - Parte 3

ATENÇÃO: Isto é um fanfiction, escrito para servir como crítica de cinema, e não como roteiro comercial, ou seja, sem fins lucrativos. Sugiro que se veja primeiro o filme, e depois se leia o fanfiction, ou melhor, o fansrev (acrônimo de Fan Screenplay Review, ou Revisão de Roteiro Por Um  Fã) abaixo. _ Wagner RMS.

Leia: Parte 1 | Leia: Parte 2.

image

A missão International Space Committee - ISC - Aurora é um esforço internacional de exploração do Sistema Solar, e é composta por (a) veículo (sonda Aurora) que deveria executar sondagens e pesquisas por toda a área próxima a Marte, incluindo asteróides cruzadores da órbita do planeta vermelho; (b) três equipes de pouso, que deveriam se revesar por cerca de 24 meses, nas construção de bases fixas na superfície de Marte, em suas luas, e, se possível, em um dos asteróides visados, e explorar todos estes alvos. A transcrição de gravação abaixo, editada para sua conveniência, seria a versão final do que aconteceu com a equipe de pouso Aurora 2, em seus últimos dias na superfície de Marte antes de serem recolhidos pela sonda Aurora, conforme descrito por Vicente Campos, Oficial Comandante e Engenheiro de Sistemas da missão. A divulgação total ou parcial deste conteúdo é passível de prisão, multa e confisco de bens.

image

GRAVAÇÃO DE RAIO ZULU 7524 CONECTADO, TERCEIRA PARTE DA TRANSMISSÃO.

O que restou dela. A pele encanecida, cheia de manchas avermelhadas e muito escuras em alguns pontos, albina e quase descarnada em outros. A prateleira que Lane usou estourou o topo do crânio da coisa, mas o rosto estava quase intacto, e naquela escuridão, mesmo naquela treva toda, com as luzes que restaram espalhadas, e nós trêmulos, só Lane lembrando de pegar sua lanterna, todos vimos os traços de Dalby deformados naquela coisa. De repente Lane me deu um puxão e com a luz de sua lanterna, me mostrou um buraco nos farrapos da manga do traje de Dalby. Dava para ver o braço por baixo, e tinha um buraco na pele também. E…

(Silêncio)

Havia algo embaixo da pele dela. Junto com os músculos, ou eram os próprios músculos, eu não sei, não sou biólogo nem médico. A visão era tenebrosa, e asquerosa.

A princípio eu acho que parecia que as próprias fibras musculares dela estivessem se desfazendo, pois no meio do vermelho purulento, sob a pele de Dalby, por entre os músculos, uns filamentos se contraiam e descontraiam, como se uns fios muito finos dos músculos dela estivessem relaxando e retesando, enquanto o corpo morria.

Então Lane me cutucou de novo e eu vi. O foco da lanterna dela, dissipando as trevas num certo ponto do corpo da criatura, mostrava. Os filamentos se encolheram como se fosse aquilo um movimento final, de algo orgânico morrendo, mas quando essas coisas atingiram certo tamanho, eles tomaram vida e avançaram por dentro de Dalby, como aqueles pequeninos vermes que surgem em cantos sujos, onde se decompõem restos orgânicos. Aquilo estava rastejando sob a pele, sobre os músculos, e parecendo, muitas vezes, brotar das próprias carnes do cadáver. E não parava por aí, os vermezinhos se ligavam uns aos outros, enquanto rastejavam, formando rapidamente uma rede, uma malha que cresceu muito rápido, fechando-se sobre e por dentro daquilo que um dia foi nossa amiga Dalby. Mas, de repente, a coisa despertou!

Numa explosão de raiva ou de algum furioso instinto de sobrevivência, Dalby nos derrubou e se arrastou com uma rapidez tremenda para o canto mais escuro daquele lugar, usando pernas e braços para se mover como uma imensa e pavorosa aranha disforme e enlouquecida. E de lá, da escuridão... Ela falou, com a voz agora mais esganiçada, por causa do que Lane fez com ela, acho, e dizendo novamente “parem de brincar!”. E Lane gritou “Espera!” quando eu e Irwin ameaçamos correr dali como se o diabo estivesse atrás de nós. Agarrei Irwin, que berrava e tentava se levantar e correr, e fiz ele calar e parar junto comigo, ameaçando partir o visor do capacete dele.

“Essa coisa. Precisamos entender ela”, a Lane falou pra gente, “talvez se nós escutássemos, e parássemos de... Correr...”. Lane parecia sem ar, quando se arrastou até nós, e nos fitou com seus olhos muito negros e bonitos. Daí, com sua voz mais firme, Lane nos disse “fiquem calmos”.

Lane então se virou, e falou em direção ao cadáver de Dalby, perguntando o que ela era. Foi um silêncio imenso que veio depois da pergunta, enquanto o canto escuro daquela sala parecia crescer na nossa direção. Depois de muito tempo, um suspiro brotou em nossos ouvidos. E depois “Lane?...”, gaguejou a coisa, imitando com perfeição o timbre de Dalby.

“Dalby! Dalby, querida, é você?”, me lembro que Lane perguntou, ansiosa. “Você ainda está aí, querida?”.

Outro silêncio, seguido de uma espécie de choro contido, bem baixinho. Aquela minha ânsia de vômito reapareceu.

“Dalby?...”, murmurava Lane, e do escuro veio a voz em resposta, dizendo, tristonha, algo feito “Lane, eu tô doente… Marko… Ele me machucou…”. Tenho certeza que ouvi Lane soluçar, chorando. Não era ela, eu sabia, mas... Era como se fosse ela ali, falando de novo com a gente.

“Dalby”, disse a Lane fungando, “O que é isso que está… Que está em vocês?”.

“São lembranças, Lane”.

(Silêncio)

Isso pode ser muito importante para vocês aí na Terra. Prestem atenção no que a coisa disse, vou descrever o melhor que eu puder.

(Silêncio. Ruído não reconhecido)

Foi aquilo mesmo que a Da… Que o que foi Dalby nos disse. “São lembranças, Lane”, numa respota de pronto, rápida, e, depois de um tempo quieta, a coisa completou dizendo “Lembranças de um passado muito antigo”.

“Daqui, de Marte?”.

“Sim, Lane, não são minhas, mas agora são minhas também, essas memórias”.

“Não pode ser Dalby”, eu disse, “o cérebro dela tá arrebentado”.

Ouvimos um gemido e um tossir engasgado. E a coisa continuou a falar, às vezes com a voz firme, às vezes gaguejando, mas falando algo sobre ter entendido, através das memórias que eram também dela agora, que a vida em Marte, eu acho, tinha tido muito pouco tempo para nascer, viver e morrer. Houve tempo em que o planeta continha mares e vegetação, mas, na escala do Sistema Solar, claro, isso não durou muito, e Marte começou a perder água e atmosfera, e mais ou menos numa centena de milhões dos nossos anos, virou o deserto que é hoje. Mas, a Dalby disse, a vida lá era tão feroz e obstinada quanto a vida é na Terra. Evoluindo, se adaptando, enquanto o planeta secava, esses organismos marcianos entraram numa espécie de funil evolutivo, geração após geração, aprendendo a sobreviver com cada vez menos recursos, seguindo por caminhos evolucionários onde era se adaptar depressa ou sumir. Dalby tinha sido bioquímica em vida, então devia saber o que estava dizendo.

(Silêncio)

Porra, eu não sei se falei uma merda ou não. Que merda! Aquilo não podia ser mais a nossa Dalby.

(Silêncio um pouco mais prolongado)

Bem, o fato é que aquela coisa nos contou que essa vida marciana sobrevivia a todo custo, em qualquer condição, adormecendo por muito tempo se preciso, e mudando muito, muito rápido pra se adaptar a qualquer fonte de nutrientes. O monstro falou alguma coisa sobre a forma atual daquela criatura ser uma espécie de rede sem centro, tipo a Internet. Eu senti um medo pavoroso quando o troço parou, silenciou, e depois de um tempo disse “eu... Nós ansiamos desesperadamente por um novo mundo. Mas nunca conseguimos alcançar o espaço. Até agora.”.

Enquanto Irwin bufava, de medo e raiva, Lane estendia a mão. Tentei segurar ela, mas ela se arrastou um pouco para frente, e estendeu a mão para as trevas do fundo da sala, para o que ela achava, claramente, que poderia ser a Dalby.

“Dalby, sou eu, a Lane. Somos amigas…”, ela falou, corajosa ou estupidamente, acho que era coragem. E Lane se arrastou mais um pouco à frente, “nós já vivemos em paz antes… Por favor... E se... E se nós ajudássemos vocês?”.

De repente a coisa uivou, em prantos, dizendo “Antes nós éramos a mesma coisa, Lane! Meu Deus! Meu Deus! Lane! Não há mais tempo! Oportunidades! Não podem ser desperdiçadas! Viver ou morrer! Viver ou...”. Lane não teve tempo de voltar, a coisa saltou sobre ela, se atracou com ela! Desta vez, por alguma razão, talvez por causa daquele negócio de fera acuada, Irwin não fugiu, na verdade avançou até mais rápido que eu, e enquanto eu puxava Lane das garras daquela coisa marciana, Irwin, com um pedaço partido da barra de sustentação das prateleiras das plantas, que eu nem tinha visto que ele carregava, batia com incontrolável fúria no monstro que usava a voz de Dalby. Enquanto recebia os golpes brutais e tentava revidar, a coisa gritava, com a voz da nossa Dalby, berrando “Pare, Irwin, pare! Eu não quero morrer, Irwin! Precisa entender! Eu também não quero desaparecer!”, mas o psicólogo não parava nunca, batia sem parar, batia como se nunca mais fosse parar. Irwin gritava “Morre! Morre! Mooorreeee!”, enquanto Lane murmurava algo, chorando magoada, acho que por não ter acontecido um acordo, não sei.

Usando a barra como lança, Irwin agora furava violentamente a coisa no chão, que já estava quase imóvel, o sangue purulento se espalhando por todo lado. Lane me empurrou e se levantou, segurando o ombro do homem descontrolado, dizendo “Para, Irwin!”, mas o cara acertou ela.

(Silêncio)

O filho da puta acertou Lane. O infeliz filho da puta acertou a garota! Eu sei. Sei que ele não tava normal, mas o cara acertou Lane como se ela fosse mais um monstro vindo por trás dele. Girou a barra que tinha nas mãos e bateu com tanta força em Lane, que ela quase voou para o lado, despencando no chão. Eu não sei como fiz aquilo, não lembro, só sei que derrubei Irwin sobre o monstro esfacelado no chão e arranquei a barra de ferro dele. Acho, honestamente, que eu teria surrado ele também até a morte, se não tivesse ouvido Lane resmungando de dor e mágoa, pedindo aos gritos que parássemos. Corri para ela. Na hora percebi que o traje dela, na altura do braço esquerdo, tinha rasgado, e que aquele braço havia sido quebrado. Irwin chegou por cima de nós, implorando desculpas! Lane dizia que tudo bem, tudo bem. Eu estava agindo quase que por instinto para lacrar o traje de Lane, já nem via Irwin, e, claro, nem me dava conta que estávamos em ambiente pressurizado. Todos nós estávamos muito além dos nossos limites, agindo para sobreviver, pouco racionalmente.

Acho que percebi, sem querer ver, na verdade, o ferimento de Lane. A barra de metal havia rasgado não só o traje dela. Havia cortado sua pele. Limpei o melhor que eu consegui o sangue de Dalby, que escorria por sobre Lane, apliquei desinfetante e o curativo adesivo que todos carregamos em kits nos nossos trajes, e, fechando o rasgão no traje dela com grampos, apliquei os polímeros adesivos e vedantes, que aderiram e lacraram o buraco. Fiz tudo conforme o manual, enquanto evitava olhar para Lane, que, eu sentia, me fitava com os olhos ao mesmo tempo cheios de gratidão, lágrimas e raiva.

Minha cabeça girava, eu tinha raiva de Irwin, e torcia para Lane ficar bem.

Não havia mais para onde irmos. Não havia mais salas na cúpula hidropônica. Só nos restava ficar ali com o cadáver estranhamente fumegante e dilacerado, semiescondido na escuridão, do que havia sido Dalby. Ou irmos para o compartimento estanque, na câmara de compressão. Levei Lane até lá, seguido de Irwin que carregava outro pedaço de barra nas mãos. Eu não tinha fôlego para discutir. Assim que nos trancamos na sala de compressão, Irwin foi dizendo que Lane devia estar infectada por aquele organismo alienígena.

  CONTINUA…

Curtiu? Quer ficar por dentro de novos lançamentos e em breve concorrer a livros e brindes? Então por favor inscreva seu e-mail na minha lista de leitoras e leitores, clicando aqui.

Leia Mais Livros Grátis

10 years ago

The Last Days on Mars (Fansrev) - Parte 2

ATENÇÃO: Isto é um fanfiction, escrito para servir como crítica de cinema, e não como roteiro comercial, ou seja, sem fins lucrativos. Sugiro que se veja primeiro o filme, e depois se leia o fanfiction, ou melhor, o fansrev (acrônimo de Fan Screenplay Review, ou Revisão de Roteiro Por Um  Fã) abaixo. _ Wagner RMS.

Leia: Parte 1.

image

A missão International Space Committee - ISC - Aurora é um esforço internacional de exploração do Sistema Solar, e é composta por (a) veículo (sonda Aurora) que deveria executar sondagens e pesquisas por toda a área próxima a Marte, incluindo asteróides cruzadores da órbita do planeta vermelho; (b) três equipes de pouso, que deveriam se revesar por cerca de 24 meses, nas construção de bases fixas na superfície de Marte, em suas luas, e, se possível, em um dos asteróides visados, e explorar todos estes alvos. A transcrição de gravação abaixo, editada para sua conveniência, seria a versão final do que aconteceu com a equipe de pouso Aurora 2, em seus últimos dias na superfície de Marte antes de serem recolhidos pela sonda Aurora, conforme descrito por Vicente Campos, Oficial Comandante e Engenheiro de Sistemas da missão. A divulgação total ou parcial deste conteúdo é passível de prisão, multa e confisco de bens.

image

GRAVAÇÃO DE RAIO ZULU 7524 CONECTADO, SEGUNDA PARTE DA TRANSMISSÃO.

Brunel olhou em volta, como se estivesse com raiva, e agarrou um extintor de incêndios, mandou que eu o seguisse, e enquanto corria para a eclusa de ar, perguntou se eu sabia como impedir a comporta de abrir. Eu disse que tentaria. Mas era tarde, enquanto corríamos, como Brunel não deu ordem direta, o lerdo do Harrington deve ter levado um momento pra agir e bloquear a porta, então havia alguém já dentro da câmara de compressão quando chegamos a antessala. A luz verde, indicando que quem estava lá fora podia entrar, acendeu e quase no mesmo instante Brunel socou o botão vermelho de lacre daquela comporta. As luzes da câmara se apagaram, acenderam as luzes fracas e vermelhas de emergência, e a comporta travou de ambos os lados. Todos estavam ali agora, eu lembro, menos Harrington, que deve ter ficado respondendo à sonda Aurora. Prendemos a respiração quando Brunel espiou pela pequena janela da câmara de compressão. Ele disse “estão lá, acho que estão agachados e abraçados lá”, premiu o botão do interfone, e disse “quem são vocês?”, mantendo o botão pressionado, para que ninguém precisasse fazer isso do outro lado.

(Silêncio. Vicente aspira ar, com força)

Demorou para que respondessem. E a voz de Marko apenas disse, com calma e frieza, “abram a comporta”. Brunel respondeu que não abriria até que eles se identificassem e dissessem porque estavam ali. Harrington entrou em contato pelo interfone interno da base, dizendo que podia ver a câmara de compressão pelo vídeo interno, e que só havia um visitante dentro da câmara! E o que estava lá dentro, de fato sozinho, pulou em nossa direção, e por uma fração de segundo foi como se alguém agarrasse um cadáver em decomposição e empurrasse a cara dele contra a janela de comporta interna, a pouca luz de emergência vermelha o fez parecer banhado em sangue, foi só um segundo, mas foi horrendo.

Todos corriam, arrancavam os trajes dos suportes, vestindo eles com a pressa do desespero, no meio do vendaval da descompressão. Harrington apareceu na porta da antessala da eclusa de ar, para pegar e vestir seu traje pressurizado, seu rosto estava torcido numa careta de medo, ele ameaçou entrar, as luzes falharam, ouvi um som de rasgar, e eu só vi as pernas do sujeito se batendo, enquanto alguma coisa o arrastava de volta, em direção a um corredor escuro, onde as luzes se apagaram de vez e as luzes de emergência não se acendiam. Irwing gritava, em pânico, enquanto tentava fechar o capacete atrapalhadamente, e ele não teria conseguido se a Kim não tivesse fechado por ele. Ela já estava no traje. Lane também. Brunel gritou para usarmos a passagem pressurizada para a cúpula hidropônica, ele mesmo parou na outra porta que dava acesso à passagem e ficou pondo seu pessoal para passar por ali. As luzes se apagaram, e voltaram a acender, e algo da altura de Dalby estava ali dentro, com a gente, e estava abrindo a comporta que nós lacramos, pressionando de novo o mesmo botão vermelho que Brunel havia premido. A luz voltou a piscar e a coisa veio pra cima da gente! Brunel atirou o extintor que ele carregava contra a coisa. Lembro que corri atrás de Lane porque ela me puxou pela mão, com Irwin atrás de mim. Mas Irwin foi agarrado, gritava pelo rádio dos trajes que tinham agarrado ele, enquanto Kim gritava que estava vendo, algo tava mesmo agarrado em Irwin. Brunel gritou alguma coisa que não lembro. Enquanto ela falava, eu ouvia batidas fortes mas surdas, seguidas, tum, tum, tum! Kim e Brunel espancavam algo com alguma coisa. Me virei, vi por sobre o ombro Irwin levantando e correndo em minha direção com Kim, segurando um outro extintor, e Brunel também armado com algo, vindo por último. Uma forma escura se debatia no chão atrás deles! Na luz vermelha, piscando e vacilando intensamente, aquilo parecia um demônio se debatendo no inferno, mas no último instante, para me apavorar mais ainda, eu vi perfeitamente que era a silhueta de uma pessoa.

As luzes da passagem, alimentadas pelas baterias da Cúpula Hidropônica, não se apagaram. Enquanto corríamos através dela, vimos através das seções transparentes da passagem pressurizada que havia um dos nossos Rover estatelado contra uma das laterais da Base Tantalus. As luzes de toda a base agora decaiam, mergulhando aquela parte do nosso mundo na escuridão de vez.

Foi aí que eu notei que apenas Irwin corria atrás de mim. Parei o cara, que tremia e berrava, bem ali no meio da passagem pressurizada. Gritei com ele, perguntando onde estava Kim e Brunel. Irwin, em total desespero, fora de si, berrava que as coisas agarraram Kim e Brunel, e que ele, Irwin, fugiu, correu, fechou a porta estanque do corredor pressurizado atrás de si, sem olhar pra trás! Eu tive vontade de socar o cara ali mesmo, mas lá atrás, no início do corredor, na escuridão que engoliu o Comandante e Kim, eu ouvi a porta estaque bater. Empurrei Irwin na minha frente, e corri atrás dele, gritei por Lane, que respondeu dizendo que estava na outra ponta, na Cúpula, chamando por nós. Eu disse a ela que pegasse ferramentas, qualquer coisa pra eu conseguir lacrar as comportas de lá. Empurrando Irwin na frente, entrei na Cúpula com Lane me empurrando uma caixa de ferramentas. Peguei um alicate, arranquei o teclado externo enquanto alguma coisa, uma das coisas, vinha correndo pela passagem pressurizada, nas minhas costas. Entrei e bati a comporta, lacrando ela e acionando o mecanismo de lacre, quando ouvi o monstro lá fora bater várias vezes contra a comporta! Foi por um triz.

“Conseguimos…” eu disse, já sem fôlego por causa do meu CO2 de novo. A Cúpula Hidropônica estava escura, com luzes intensas, mas direcionais, vindas de baixo para cima dos tanques onde fazíamos as plantas terrestres crescerem na água retirada das fossas marcianas. Naquela penumbra eu pude ouvir Irwin gemendo, Lane respirando profundamente, minha própria respiração intensa, e, de repente, a voz de Dalby dizendo “parem com a brincadeira”.

(Silêncio. A seguir uma quase inaudível risada rouca e nervosa, muito provavelmente do próprio Vicente)

Só tinha um daqueles troços me seguindo pelo duto pressurizado, foi aí que lembrei. A coisa que foi Dalby, capaz de funcionar na atmosfera rarefeita de Marte, deu a volta por fora, e nos alcançou na hidropônica. A coisa, eu me lembro agora, em retrospecto, não tinha mais o capacete da Dalby, claro, mas ainda usava a touca com o fino microfone grudado nela, e com os auriculares, que permitiam ao monstro falar e nos ouvir pelo rádio do traje, que evidentemente ainda funcionava. Por entre rasgos na touca em farrapos, era possível se ver alguns cachos dos cabelos da nossa Dalby, empapados de sangue e algum tipo de gordura. Cabelos que um dia foram dourados feito trigo.

Quando escutamos a voz de Dalby o terror foi absoluto, eu achei que fosse vomitar quando ouvi aquela coisa falando. A Lane, que havia se agachado, cansada, ficou de pé num pulo, olhos arregalados, trêmula. Irwin começou a choramigar, enroscando-se no chão contra a parede. Eu coloquei mais ar pra dentro e prendi a respiração. Funcionou, fiquei mais lúcido na hora! Fiquei agachado mas pronto para o que viesse, acho.

Nas sombras, logo depois das bandejas iluminadas de cultivo, a criatura aparecia e desaparecia, mergulhando e saindo das trevas. Mal dava para ver seu rosto assustador, mas dava para perceber que a coisa tinha algo metálico, afiado e muito perigoso em uma das mãos descarnadas dela. E nós estávamos encurralados!

Ativa, Lane tentava arrancar qualquer coisa das paredes! Os extintores não estavam ali, retirados pra vistoria, não havia nada ali! Irwin implorava, resmungando "por favor" sem parar.

A coisa veio!

Algumas das bandejas das plantas um pouco mais distantes explodiram, quando aquilo saltou de lá de trás, vindo direto em cima de nós! Ou melhor, de mim, pois fui o primeiro alvo.

Lembrei da caixa de ferramentas, e foi ela que me salvou. A coisa enfincou com tanta força o pedaço de metal que ela usava como faca na caixa, que chegou a furar o plástico industrial e ficou presa lá. Se fosse eu, teria atravessado o traje e meu peito, podendo até partir costelas facilmente.

Usei toda a minha força para levantar e empurrar o troço contra o fundo de novo, para cima das plantas, nem sei que eu queria, só queria, eu acho, bater com ela em alguma coisa. Dei um puxão lateral na caixa de ferramentas, onde a faca ainda estava travada, e fiquei espantado quando consegui arrancar a arma daquela monstro com pele áspera e como que queimada, e com uma versão ensandecida dos olhos claros de Dalby faiscando, só que de um tom opaco, doentio, furioso! Ela reagiu, e com um movimento muito rápido usando as pernas e (eu juro que vi) um dos pés que estava descalço para agarrar onde conseguiu, feito um primata, e se empurrar de volta para cima de mim com tanta força que eu desabei e perdi a caixa, que, um segundo depois estava nas mãos da criatura, descendo violentamente sobre o meu capacete. Ela teria me arrebentado se não fosse Lane. A luz da sala vacilou e as lâmpadas das bandejas hidropônicas pareceram se espalhar para todo lado, com seus fachos claros girando caóticos, e, o mais importante e que aconteceu ao mesmo tempo, algo atingiu o monstro com tanta força que uma parte do crânio do monstro esmigalhou e voou longe, junto com um sangue vermelho-amarelado, purulento e muito escuro, que se derramou pela sala, atingindo Lane, que havia usado uma prateleira da hidropônica para arrebentar a cabeça do monstro, e encharcando Irwin que gritou no rádio tão alto que eu quis que ele tivesse morrido, o filho da puta.

(Silêncio. Um momento depois Vicente repete:)

Filho da puta.

Eu tentava ficar de pé e gritava “como ela entrou? como ela entrou? fecha! fecha!”. E enquanto eu gritava, consegui correr até a comporta da sala de compressão da cúpula hidropônica, ali ao lado, e percebi que por uma tremenda sorte o alicate retirado da caixa de ferramentas ainda estava comigo. Entrei na câmara de compressão, descomprimi por um tempo que pareceu absurdamente longo, e abri a escotilha externa. Se outra coisa daquelas estivesse lá fora esperando, teria me atacado, pois fiz o que fiz num impulso só. Mas não havia monstro nenhum ali fora, e eu destruí o teclado externo da câmara, onde o código de emergência para entrada poderia ser acionado, e voltei a fechar a comporta e lacrar ela. Foi quando um vulto surgiu correndo na tempestade de areia que começava a bater pesado do lado de fora. Imediatamente o vulto começou a esmurrar da comporta externa.

Voltei à sala onde a briga com o que foi Dalby aconteceu, e encontrei Irwin e Lane examinando a criatura morta. Era Dalby mesmo, sem dúvida.

(Silêncio)

O que restou dela.

CONTINUA… Parte 3.

Curtiu? Quer ficar por dentro de novos lançamentos e em breve concorrer a livros e brindes? Então por favor inscreva seu e-mail na minha lista de leitoras e leitores, clicando aqui.

Leia Mais Livros Grátis


Tags
10 years ago

(O verniz da civilização) A metáfora esconde uma dúzia de falácias de uma vez. Uma das mais perigosas é a insinuação de que a civilização, sendo artificial, vai contra as leis da natureza: de que seria o oposto do estado primitivo... É claro que não existe verniz nenhum, mas um processo de crescimento, e primitivismo e civilização são estágios da mesma coisa. Se civilização tem um oposto, é a guerra. Das duas coisas, ou se tem uma ou outra. Não ambas.

Genly Ai, no livro "A Mão Esquerda da Escuridão", de Ursula K. Le Guin.


Tags
10 years ago

The Last Days on Mars (Fansrev) - Parte 1

ATENÇÃO: Isto é um fanfiction, escrito para servir como crítica de cinema, e não como roteiro comercial, ou seja, sem fins lucrativos. Sugiro que se veja primeiro o filme, e depois se leia o fanfiction, ou melhor, o fansrev (acrônimo de Fan Screenplay Review, ou Revisão de Roteiro Por Um  Fã) abaixo. _ Wagner RMS.

image

A missão International Space Committee - ISC - Aurora é um esforço internacional de exploração do Sistema Solar, e é composta por (a) veículo (sonda Aurora) que deveria executar sondagens e pesquisas por toda a área próxima a Marte, incluindo asteróides cruzadores da órbita do planeta vermelho; (b) três equipes de pouso, que deveriam se revesar por cerca de 24 meses, na construção de bases fixas na superfície de Marte, em suas luas e, se possível, em um dos asteróides visados, e explorar todos estes alvos. A transcrição de gravação abaixo, editada para sua conveniência, seria a versão final do que aconteceu com a equipe de pouso Aurora 2, em seus últimos dias na superfície de Marte antes de serem recolhidos pela sonda Aurora, conforme descrito por Vicente Campos, Oficial Comandante e Engenheiro de Sistemas da missão. A divulgação total ou parcial deste conteúdo é passível de prisão, multa e confisco de bens.

image

GRAVAÇÃO DE RAIO ZULU 7524 CONECTADO, INÍCIO DA TRANSMISSÃO.

Eu tenho cerca de quinze a trinta minutos.

(Um pouco de estática enquanto a antena se alinhava)

Vou resumir tudo. E torcer pro Aurora Lander não reentrar antes do fim.

(Silêncio)

Na verdade, eu não sei ao certo... Não sei ao certo por onde começo.

(Silêncio)

Sim, ah, merda, óbvio, ok... Vou morrer aqui, daí, desculpem, mas não dá pra ser muito delicado.

Então… Na verdade, a situação começou bem antes de nós, quando a primeira equipe de solo construiu e habitou a Base Tantalus. Imagino que já tenham entendido do que eu estou falando, Marko Young, o biólogo que desapareceu. Nenhum corpo, nenhum vestígio, os demônios de areia, essas tempestades que riscam Tantalus, elas enterraram os restos do azarado, depois de algum defeito no traje. Quem mandou andar sozinho? Mas o fato de o equipamento de perfuração e análise do cara ter ficado por lá, com o painel solar aberto, e emitindo de vez em quando dados e pings de localização, criou um clima meio sombrio, meio idiota entre nós, e surgiu o papo furado sobre ele ter encontrado algo… Bem, agora eu sei que é bem provável mesmo que o cara tenha encontrado algo. Lembro dele da Terra, nos treinamentos, texano, intragável, mas muito inteligente. Deve ter ido atrás de algo, sozinho. Vai ver para ficar somente para ele a glória da descoberta.

Encontrou e foi encontrado. O que o encontrou teve quase oito meses para, a bem da verdade, digerir e entender o cara. Digerir, espero, no sentido de metáfora.

Eu não posso me prolongar, então lá vai. Existe vida em Marte, e de algum modo ela é especializada em nós, ou é especializada em qualquer outra forma de vida, em estudar elas e sobreviver através delas, ficando especializada em nós por causa do Marko.

Vocês vão entender. Recebemos liberação para estudar a área onde Marko desapareceu, pela primeira vez em meses as tempestades ciclônicas deram um tempo, e alguém no Controle da Missão ficou curioso com a boataria em torno dos demônios de areia, e estava longe deles o suficiente para mandar os buchas de canhão aqui para averiguar.

Eu, Lane e Dalby fomos destacados por Brunel para resgatar o equipamento de Marko. Chegamos lá no Rover dois. Dalby ficou nele, enquanto eu e Lane… Deus, sinto falta de Lane… Eu e Lane subimos as rochas aplainadas e fomos triangulando, por triangulação unitária mesmo, já que mais uma vez os satélites estavam fora do ar, e, por sorte, depois de cerca de uma hora, encontramos os equipamentos do pobre astronauta perdido, estranhamente arrumados numa depressão, havendo lá, inclusive, um tablet que tinha sido meticulosamente desmontado. A noite estava caindo, e foi o pisca-pisca da luz da antena da sonda perfuratriz, na escuridão da fenda, o que nos atraiu e nos levou direto pra lá. O cabo de força serpenteava, para fora da depressão, e o painel solar estava ligado a ele, aberto e fixo no chão com estacas, os redemoinhos de areia só faziam limpar os painéis, sem arrancar, e era por isso que eles funcionaram sem parar. Comentei que aquilo não parecia o trabalho de um biólogo.

(Silêncio)

Estávamos há cerca de meia milha do Rover.

“Alguém está tentando entrar na câmara de compressão”, eu lembro até do tremor na voz dela. A base avisou que ninguém tinha nos seguido. Lane e eu corremos de volta. Dalby começou a entrar em pânico. Eu já estava gritando algo como “calma, Dalby, use o painel, trave a comporta!”, e ela dizendo “Eu travei! Quem é?! É algum tipo de pegadinha, Campos? Parem com isso! Estão me assustando! Eu travei, eu travei a comporta externa, mas quem tá aqui sabe o código de emergência!”, e ela começou a chorar e a gritar pedindo, depois implorando que parássemos com a brincadeira! Houve um barulho de descompressão, e nós, Lane e eu, tentamos correr mais rápido. Eu descobri no voo pra cá pra Marte como sou ruim para oxigenar artificialmente, daí então, correndo e berrando dentro de um traje pressurizado, meu CO2 atingiu o limite rapidamente, Lane continuou, disposta e ágil como sempre, mas eu tive que parar pra recuperar a porra do fôlego. Dalby já não gritava mais. Lane chegou lá primeiro, ela sempre foi a mais esforçada e rápida de nós todos.

(Silêncio)

Nunca mais encontramos Dalby, a nossa Dalby de doces olhos azuis.

(Silêncio. Vicente tosse)

Quanto consegui entrar no Rover, só Lane estava lá, parada.

Então ela apontou para o que ela tava olhando, e lembro que meu estômago revirou. Era o capacete de Dalby.

(Silêncio um pouco mais longo)

Procuramos por várias horas, aquela noite, até as baterias do Rover ficarem perigosamente baixas. Ninguém poderia ter certeza de que outra tempestade de areia não desabaria por ali. Mesmo assim pedimos permissão à Base Tantalus para ficarmos por lá. Estávamos em choque, ainda querendo que Dalby voltasse, de algum modo. Brunel fez bem em nos mandar de volta à base, estávamos nos pondo em perigo, e logo os ciclones de areia começaram a dançar por lá, na verdade em toda a região, seria um risco estúpido dormir no Rover.

A transmissão do Comandante para nós foi mais ou menos assim “quero que voltem antes de terem que esperar pelo sol para recarregar as baterias. Desculpa, gente, mas se não encontraram Dalby até agora, minha prioridade passa a ser a segurança de vocês dois” e mais ou menos aqui, nesta altura, houve interferência e uma voz diferente entrou na transmissão, dizendo algo tipo “tragam Aurora de volta”.

Foi apenas um instante, uma frase, mas gelou o sangue de todo mundo.

Lane brigou comigo, não aceitando, racionalizando aquilo, mas Brunel escutou, e tenho a impressão, pelo silêncio relutante dele, que o Comandante achou a mesma coisa que eu. Era a voz rouca e desleixada do texano que treinou com a gente na Terra. Brunel, depois de um tempo, achou que fosse vazamento da memória do diário de missão gravado. O sotaque interiorano e norte americano quase desaparecido, mas que merda, tenho certeza que era o Marko.

Nos reunimos com Brunel e os outros, na sala comum da Base Tantalus, pouco depois de nós chegarmos lá. Irwin tentou seus psicologismos em nós, Lane e eu. Eu estava muito nervoso, mas louco ainda não. Agora não sei, mas ali, naquele instante, eu tinha certeza que Irwin poderia ir se foder.

Contamos tudo de novo pro Brunel, pois viemos o caminho todo discutindo sobre o que aconteceu, e o Comandante orientou Harrington a solicitar instruções ao Controle da Missão, ou seja, vocês aí na Terra. Mal Harrington se sentou na console de comunicação, ele se virou para o sistema ao lado, aquela outra grande tela com as imagens das câmeras externas, chamando a gente para ver, tinha alguém lá fora, entre as rajadas de areia dava para ver alguém, o contorno muito confuso de um traje pressurizado. Um de nós, não lembro direito, talvez a Kim, que chegou por último à reunião, perguntou se não poderia ser a Dalby. Eu, que costumo ficar na minha, mandei calar a boca, Dalby tava morta. Kim Aldrich, mulher de pavio super curto, tava me dizendo para mandar minha mãe calar a boca, ou algo assim, quando Irwin, que havia chegado perto de Harrington e da tela das câmeras, deu um pulo para trás.

Outra sombra apareceu! Agora havia duas silhuetas lá fora.

Aquilo era insano pra gente! O pessoal da sonda Aurora ainda estava longe. Dalby tava sem oxigênio havia horas, e Marko havia meses. Mas não havia ninguém mais em Marte que pudesse estar lá fora, naquele momento! Ficamos como que paralisados, vendo as sombras bruxuleando, distorcidas pela areia, não nos mexemos mesmo quando essas sombras começaram a vir na nossa direção.

Brunel quebrou o silêncio, mandando Harrington enviar a mensagem para o Controle da Missão na Terra, e que ele entrasse em contato com a sonda Aurora. Neste instante percebi pelo canto de olho que a sonda Aurora estava manobrando para entrar em órbita. Foi a nossa última transmissão para vocês na Terra, antes desta aqui, vocês devem ter recebido uns oito minutos depois que Harrington enviou. Os visitantes levaram uns cinco minutos para chegar à nossa eclusa de ar. Um momento antes deles chegarem, quando Kim percebeu a trajetória e resmungou que eles estavam vindo direto pras eclusas de ar, eu agarrei o Comandante e disse que o que tava lá fora sabia os códigos de emergência, que mesmo que nós lacrássemos a comporta, eles iam conseguir entrar!

CONTINUA… Parte 2.

Curtiu? Quer ficar por dentro de novos lançamentos e em breve concorrer a livros e brindes? Então por favor inscreva seu e-mail na minha lista de leitoras e leitores, clicando aqui.

Leia Mais Livros Grátis


Tags
10 years ago

Você confere agora, no vídeo acima, a entrevista com o Escritor e Roteirista Wagner RMS, autor da série Código 7 Infinidade, no programa de TV Fluxograma!

   Direção: Flavio Langoni

   Produção: Lívia Pinaud

   Apresentação: Marília Tapajóz

Leia também a resenha que publiquei sobre "Se Eu Ficar" no site sobre filmes Infinidade!

"O filme —  e o livro —  questionam aquele que vê, e que lê, sobre o que é realmente importante na vida. E falam sobre o quão angustiantes são as escolhas que essa mesma vida nos trás, de repente. Como você pode perder, subitamente, tudo aquilo que mais ama, e ainda assim encontrar forças e seguir adiante? Ou será mais certo, apesar de tabus e falsos moralismos contra tal atitude, desistir e partir? Tudo isso do ponto de vista de Mia Hall (Chloë Grace Moretz), uma jovem violoncelista, uma moça como todas as outras moças, única! "

Você Confere Agora, No Vídeo Acima, A Entrevista Com O Escritor E Roteirista Wagner RMS, Autor Da Série

Conheça também:

Fanpage de Código 7 Infinidade!

Curta também a Fanpage do Fluxograma!


Tags
10 years ago

Assim é uma história, e também é a vida: não é o quão longa ela é, mas o quão boa ela é, isso é o que importa.

— Seneca

10 years ago

Sub Specie Aeternitatis, et secundum aliam rationem

Eis uma sátira ao apocalipse, um miniconto, contendo uma visão crítica mas bem-humorada sobre um criador e seu antagonista, dialogando uma filosofia chinfrim, sobre o que (eles acham que) importa, acima das cinzas do mundo.

image

Pior que foi. Aos vinte e um dias, do décimo segundo mês, do ano de dois mil e doze após o suposto nascimento de Cristo (que realmente fez o melhor que pôde)... Ou foi antes? Ou depois? Ah, chá prá lá, o que importa é que esse papo rolou a partir do instante em que o planeta Terra enfrentou uma bela faxina geral...

— ENTÃO VAMU LÁ... AAAAPOCALIPSEEE... NOW! — E após o lampejo final, ELE continuou: — PRONTO. BEM, VOCÊ TINHA RAZÃO, FOI MELHOR MESMO ACABAR COM ESSA NOVELA. O QUE VAMOS EVOLUIR AGORA?

— outros primatas?

— NEM MORTO! E BARATAS É CLICHÊ! EU TAVA PENSANDO EM ALGAS. ALGAS SÃO PACATAS E GENTIS.

— e chaaaaa-atas.

— VAI PRO INFERNO, PALHAÇO.

— BEM, QUE TAL OS ANTÍLOPES?

— ahhhnnnnn, ha ha ha ha...

— CARACA, CARA, TÔ FALANDO SÉRIO!

—  ha ha ha ha ha ha!

— DÁ UMA IDÉIA, ENTÃO, Ô GÊNIO ABISSAL!

— quer mesmo saber o que eu acho? e, aliás, sempre achei...

— MANDA.

— deixa assim.

— ASSIM? MAS... MAS TÁ TUDO TÃO... MORTO... QUER DIZER, AINDA TEM UNS MICRÓBIOS, MAS...

— e daí? melhor assim, cara, sem brigas desnecessárias, sem aquelas imbecilidades de dar valor ao que não tem valor em si (tipo, dinheiro, dããã, eu te dou papel e você me dá tempo de sua vida, e nos matamos por isso). se liga, autoconsciência leva à inteligência, certo?

— CERTO.

— e a porcaria da inteligência serve pra quê, caaaara? pra não ser usada?!?!? eles tinham, e olha a bestagem sem tamanho que fizeram! deixa assim, arruma um pouco, põe um marzinho morto ali, uma cordilheirinha lá, faz um feng shui em tudo, sei lá, e deixa assim, mané.

— OLHA O RESPEITO! MAS... CARA, O QUE VAMOS FAZER ENTÃO? NADA?!?

— você não tem saído muito, não é?

— SAIR?

— cara, tem um universo lá fora! acorda, meu bróder, há tanta vida lá fora, e aqui dentrooooo sempre, como uma onda no mar, ha ha ha! ok, sai desse trono agora, vem!

— IR? QUE ISSO, CARA, EU NÃO POSSO, TEM TODA A CRIAÇÃO...

— ela se vira sozinha, rapá, agora o pior já passou. Vem, comigo.

— T-TAMO INDO AONDE?

— dificuldade com ironia e sutilezas emocionais, né? normal em nerds. péstenção, foi só a humanidade que foi pras... passear, meu sensível camarada. ainda tem mais coisas entre o céu e a terra, e nós podemos e vamos lá! vamos lá, na boa, tomar umas...

— BEM. OK. ACHO. E DEPOIS? QUER DIZER, A EXISTÊNCIA NÃO PODE SER SÓ ISSO... TIPO, TOOOMAAR UMAS E OUTRAS, E TAL...

— ao infinito, e além! vamu, caraca, issooooo, véio, um pé depois do outro. você vai se amarrar!!!!

To be continued...?


Tags
10 years ago

Sob o Olhar da Eternidade (Final)

Desta vez o texto pediu ao autor para ser um pouco mais profundo, mais amplo, e levou mais tempo a ser escrito. De qualquer forma chegamos ao fim desta jornada juntos, e descobrimos, enfim, que Milton é gente, que sonha, sofre, erra, se perde e se acha, mas que, se deseja algo de bom ao mundo, aos outros, então não pode ser louco, afinal. Quero, também, te agradecer, profunda e sinceramente. Você que veio até aqui comigo, me desculpe onde não atingi todas as suas expectativas, e obrigado pelos momentos em que eu pude ter o privilégio de te divertir e te comover de algum modo. Muito, muito obrigado. Agora, que se ergam as cortinas de sua poderosa imaginação, e adiante na leitura, que o alimento para sua curiosidade está logo aqui embaixo!

Leia a Parte 1 de "Sob o Olhar da Eternidade"

Leia a Parte 2 de "Sob o Olhar da Eternidade"

Leia a Parte 3 de "Sob o Olhar da Eternidade"

Hic Sunt Dracones

Desta vez era o fim da tarde, e Milton Steinberg estava novamente em frente ao Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas, na Urca, pensando em como entrar. Primeiro ponderou que, feito nos filmes, era só se deixar capturar.

— Meu nome, — Disse Steinberg ao porteiro, falando pausadamente, gravemente, para ser entendido de primeira — é Steinberg, Milton Steinberg.

O porteiro, depois de olhar para o sujeito na sua frente por um longo momento, enfim disse:

— E?…

Milton voltou para a rua e ficou olhando o prédio, se sentindo amargurado, mas também um idiota. O porteiro não estava avisado para capturar qualquer Steinberg que aparecesse, aquilo não era roteiro previsível hollywoodiano… Ou era? Então Milton voltou e tentou dizer, na portaria, que precisava falar com o Doutor Rubens Castilho Lewroy. Obviamente o porteiro informou que Castilho não estava, o físico havia pedido umas férias, ele achava, e que se quisesse o visitante poderia deixar recado para quando o Doutor voltasse, era só dizer.

Novamente Milton estava na rua estreita em frente ao prédio do CBPF, ponderando. O que pretendia fazer se fosse capturado e levado aos seus algozes? Como parar tudo aquilo? Será que, ao entrar, descobriria que não ocorreu explosão alguma e que, de fato, ele tinha ficado muito doente, completamente louco? Caminhou, tenso, pela rua, e encontrou um pequeno bar. Bebendo uma cerveja, tentou chegar às respostas, talvez a uma linha de ação.

Nada.

No entanto, em certa altura de suas elocubrações, imaginou como uma explosão naquele prédio federal não foi noticiada?

Neste instante seu celular voltou a tocar. Atrapalhadamente, enquanto se lembrava mais uma vez de filmes que viu, e tentava arrancar a bateria do celular para não ser localizado, se deu conta de que havia tentado ser capturado, e, olhando para o smartphone por um segundo, sentindo-se novamente idiota, atendeu.

— Steinberg? — Disse a voz no aparelho.

— Rubens?

— Eu. Conseguiu se mandar?

— Nós?… Cara, eu te vi mesmo hoje?

— Viu. Você conseguiu fugir também?

Após um longo e comovido suspiro, afinal a ligação de Lewroy indicava que provavelmente ele, Milton, não estava louco, Steinberg foi pondo a mão perto da boca e baixando o tom de voz, para tentar não ser ouvido por mais ninguém, além de Castilho, e por fim foi dizendo ao celular:

— Sim. Mas não suporto mais isso. Tô aqui no seu trabalho, quero encarar. Quero entrar, destruir a tal máquina, ou morrer tentando. Essa sensação que trago comigo está me enlouquecendo, cara! Tô fazendo coisas que não faria, agredindo e sendo agredido! Tô com medo de estar doido…

— Não está.

— Graças a Deus! Mas então eu tenho que entrar mais ainda, tenho que mudar tudo, não quero ser preso, não adoro minha vida, mas não quero que ela fique pior!

— Calma… Entendo…

Silêncio. Após esperar um tempo para que Rubens falasse mais, Steinberg disse, em tom suplicante:

— A experiência… Envolvia o que chamamos de correlação inversa de causa e efeito entre partículas. Usando o entrelaçamento quântico, pretendíamos provar inequivocamente que partículas espalhadas pelo espaço e tempo podiam trocar informações entre si, ou seja, causar efeitos entre si, tanto para frente, quanto para trás no tempo. Tem haver também com uma pesquisa sobre o Universo holográfico, não vou entrar em detalhes. Os equipamentos funcionam em vários centros de pesquisa pelo mundo, em câmaras no subsolo, e em dias alternados, medindo depois de cada teste seus efeitos uns sobre os outros. A Doutora Alice, que entrou recentemente para o projeto, sugeriu alinhar todos os labs e pôr as máquinas para funcionar ao mesmo tempo. É quando a explosão ocorre, às sete e meia da manhã, de uma mesma quinta-feira. Sempre.

— Então vocês?…

— Sim, já sabemos. Um camarada meu, o José Gustaf, sugeriu inclusive uma solução, mas o cara foi despedido, nunca mais soube dele. Acho que ele…

Mais uma pausa.

— Acha o quê?

— Alice tá metida com alguém, vi uns e-mails dela pra alguém na Finlândia. Acho que querem que tudo fique assim.

— Não!

— Escute, Iceberg, minha carona vai sair aqui. Vou jogar fora esse celular que estou usando. Não tenta me encontrar, por favor, meu amigo. E sai daí!

— P-peraí! Peraí, me diz como eu posso acabar com isso!

Silêncio. Quanto Milton já achava que Rubens havia desligado, este último diz:

— Minha sala. Meu computador. Pressione éfe sete na inicialização, tem um dual boot ali, entra no segundo sistema. Lembra do programa infantil que assistíamos na sua casa, Iceberg? Capitão Asa, e o jogo em que você sempre foi fera. É a senha. Adeus.

Sem dúvida, agora, Rubens havia desligado. Afastando o celular, os olhos de Milton se perderam no infinito. Ainda precisava entrar, mas agora tinha uma chance, sabia de uma boa pista. Certamente Rubens havia dito a ele como entender e destruir o experimento que o estava enlouquecendo.

Levantou-se, no impulso de voltar à portaria do CBPF, mas foi interrompido.

— Cara, vai esquecer seu telefone em cima do balcão! — Disse a senhora gorducha e com ares de pessoa simples e muito objetiva.

— Obrigado. — Respondeu Milton pegando o aparelho que, sem perceber, ele havia largado no tampo do bar. Estranhamente notou que o smartphone estava zerado de bateria. A quanto tempo?… Piscou, não podia entrar naquela paranóia de novo, ele havia conversado sim, com Rubens, e agora sabia o que fazer, precisava entrar no prédio, precisava chegar à sala de Lewroy.

Caminhou resolutamente pela rua, e estava entrando no prédio novamente quando ouviu alguém dizer:

— Oi, vizinho?

Inacreditavelmente Rheny Rousseau estava quase ao seu lado, entrando no Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas junto com ele. Aturdido, Milton ficou olhando para ela, que pareceu ler seus pensamentos e explicou, sorrindo, encantadoramente:

— Sou advogada. Tenho um cliente aqui que preciso ver para pegar umas assinaturas. — falou, levantando com o polegar a alça de uma pequena mas aparentemente cheia mochila que trazia no ombro. Ela estava elegantemente vestida, com um daqueles terninhos que deixam as mulheres ainda mais atraentes, ao menos na opinião de Steinberg, que, por sua vez, disse:

— Ah, hum, desculpe, eu não esperava te ver agora.

— Foi mal, está ocupado? Trabalha aqui? — Rheny disse, ficando mais séria, parecendo ligeiramente constrangida.

— Não se desculpe! É… É muito, muito legal mesmo te rever, quero dizer, eu queria isso, quer dizer… Te ver de novo.

Ela sorri novamente, francamente, e retruca:

— Eu também queria. Vai entrar?

— Onde?

Ela aponta, divertida, para a portaria do CBPF.

— Ah! Sim. Preciso. Mas não…

— Não?

— Quero dizer, não vão me deixar entrar. Não, eu não trabalho aqui, um amigão meu de infância trabalha, ele… Deixou um documento muito importante pra mim na sala dele, mas saiu de férias, esqueceu de avisar aos caras. Mas preciso mesmo, preciso dar um jeito de entrar…

Eles se entreolham por um instante, Steinberg ameaçou dizer algo, mas parou. Rheny então disse:

— Eu… Desculpe, gostaria de ajudar, mas… Prédio Federal, advogada, problemas. — Deu de ombros, sem jeito, e sorrindo de lado.

— Nãããão! Não, não, quê isso! Eu não ia te pedir isso. — Ele podia sentir o seu rosto se ruborizando.

Rousseau lhe estendeu a mão, que ele apertou, e ficaram assim, de mãos dadas e se olhando, ambos um tanto sem jeito, até que a moça disse:

— Posso lhe pedir uma coisa?

— Sim?

— Não desapareça.

Após mais um ligeiro momento, ainda de mãos dadas, estas se afastam, e o homem diz, com convicção:

— Prometo.

Ao ouvir isso, ela acena, com uma graça incomum naqueles dias, e vai se afastando. Ele, no entanto, a chama, e lhe diz:

— Como eu não vou desaparecer? Me dá seu telefone?

Rheny, ainda suavemente sorridente, faz que sim, e diz o número. Ele saca o celular, para anotar no próprio aparelho o número dela, mas está sem carga. Então ele busca, dentro da sua pasta tiracolo, desajeitadamente, algo em que escrever, mas Rheny é mais rápida, e tira uma caneta e uma folha de papel, uma fotocópia de algum documento, de uma das pastas que carrega em sua própria bolsa, anotando seu número no verso que estava em branco, enquanto vai dizendo:

— É cópia de um processo antigo, sem informações pessoais de clientes, essas coisas. Enfim, não tem importância. Tome, — ela entrega a folha de papel a Milton — Me liga mesmo. Como você disse, precisamos nos proteger, uns aos outros, e… Poxa, por favor me desculpa, eu sinto muitíssimo mesmo não poder te ajudar a entrar aqui…

— Nem pense mais nisso. Eu vou ligar pro meu amigo agora, e resolver isso, fica tranquila, mas… — Ele não acreditou quando aquilo saiu de sua boca, pois costumava ser muito tímido para essas coisas, só que acabou dizendo assim: — Que tal um cinema e um bom bate-papo, pra me compensar?

— Fechado! — Diz ela, erguendo o polegar enquanto caminha em direção ao balcão do porteiro.

Steinberg ficou olhando. Estava longe demais para ouvir o que se dizia, mas viu Rheny se identificar, e entrar. Era uma tarefa difícil, para ele, não se deixar hipnotizar pelo sensual e elegante movimento dos quadris da moça, enquanto ela seguia saguão adentro. Ele sorriu, sob efeito, novamente, de sua timidez. Mas, sem dúvida, era fácil gostar tanto da pessoa Rheny, quanto da mulher.

Depois que ela subiu em um elevador, o porteiro deu um breve olhar desinteressado em direção à Milton, e voltou sua atenção ao computador em que registrava as pessoas que entravam. O homem, provavelmente, matava o tempo jogando paciência ou algo assim.

O jogador de Tetris, por sua vez, ficou olhando do papel com o telefone de Rheny para a portaria, e de lá novamente para o papel. Estava se sentindo muito bem por ter conseguido o telefone da sua vizinha, especialmente por achar cada vez mais que ela era uma mulher muito legal, delicada, charmosa, inteligente. Rara.

Mas um sentimento de tristeza assomou em seu coração, mais forte até do que a agonia de saber que o mesmo dia se repetia sem parar, e ele murmurou, entre os dentes:

— Eu nunca mais vou vê-la… Não vai haver futuro para nós… Para ela…

Oprimido por aquela súbita certeza, Milton sentiu o peito ferver de agonia, e seus olhos, por um instante, marejarem. Precisava fazer algo… Precisava…

Então tomou um decisão. Ergueu a folha que recebeu da moça e foi caminhando, resolutamente, em direção à portaria. Assim que chegou lá, o porteiro ergueu os olhos da tela do computador, onde devia estar jogando cartas, e disse:

— Senhor… Milton, eu acho.

— Isso! Milton Steinberg. Eu estava esperando a Doutora Rheny Alencar Roussel, a advogada que acabou de entrar, para pegar com ela um documento, — acenou a folha que trazia na mão — só que ela me deu o documento errado, e vai precisar muito deste aqui. Pode chamar ela de volta, por favor?

O porteiro, que certamente havia percebido os dois conversando na entrada do prédio, disse, sorrindo e talvez querendo voltar depressa ao seu joguinho:

— Ela não deve ter chegado à sala trezentos e quinze ainda. Me empresta sua identidade. Mais fácil o senhor ir atrás dela.

Em menos de dez minutos, no entanto, Milton saltava do elevador no andar onde, se ele lembrava direito, ficava a sala de Rubens. Não demorou a encontrar o recinto, confirmando o nome do amigo numa plaqueta presa à porta. Testou a maçaneta. Aberta.

Entrou e acendeu a luz, indo a passos largos até a escrivaninha de Lewroy, ligando o computador, e assim que os caracteres de inicialização da máquina começaram a aparecer na tela, Milton pressionou, com força, a tecla marcada com os caracteres “F7”, e esperou. Linhas de comandos subiam, parecendo intermináveis, enquanto a máquina se preparava para trabalhar. Steinberg chegou a pensar que o dual boot não existia, mas, subitamente, o monitor exibiu uma tela rústica, feita de caracteres, pois os sistemas gráficos do computador ainda não estavam disponíveis, pedindo ao usuário que escolhesse entre dois sistemas operacionais. Digitando “2” e premindo a tecla “enter”, Milton aguardou mais um pouco. Devia ser um computador mais antigo, mais lento. Finalmente a tela de “login” do sistema operacional surgiu, com seu fundo gráfico e colorido, e seus campos para o usuário digitar nome e senha. O nome já estava preenchido com “Rubens Lewroy” e a senha Milton digitou “capitaoasatetris”, mas recebeu uma mensagem de erro. Tentou de novo, desta vez com acento, “capitãoasatetris”, e o sistema se abriu, ao mesmo tempo em que a porta da sala se abria também, e Doutora Alice Moretti entrava.

— Milton! Que interessante tê-lo aqui, de volta. Não. Não precisa se levantar, e por favor, não se mexa. Estes cavalheiros aqui podem ficar agressivos.

Um dos três homens de terno, que entraram atrás de Alice, era o cara em que Lewroy havia dado um pontapé nos testículos. Na ausência de Rubens, o olhar intenso do sujeito indicava que Steinberg serviria bastante bem para ele extravasar sua raiva com o que havia ocorrido. Na verdade o homem dos testículos feridos já erguia as mãos, empunhando algo. Com uma última espiadela para o computador na sua frente, Milton percebeu que não havia meio fácil de fechar o sistema, a não ser desligando a máquina toda, apertando o botão “on/off” do aparelho. Lançou a mão na direção do botão, e ouviu um estalo assustador, enquanto sentiu a eletricidade de uma arma de choques percorrer seu corpo. Convulsionou intensamente, e desabou no chão, sendo abraçado por uma escuridão cinzenta, enquanto ouvia, cada vez mais longe, uma mulher dizer “já chega, Jack!”. Era Moretti.

— Como assim? — Perguntava uma mulher, em algum lugar próximo, enquanto Milton recobrava a consciência. Novamente ele levou meio segundo para concatenar a voz com suas lembranças, e entender que era mais uma vez Alice falando, perguntando algo, com intensidade, para alguém, que respondeu a ela com uma voz masculina e desconhecida:

— Pouco depois que o computador do Doutor Lewroy foi ativado, lá em cima, depois que eu te avisei que ele foi ligado, na verdade, um programa rodou, acessou a rede do prédio, e alterou a programação da Armillary, fazendo com que ela…

— Pára a Armillary agora! E desliga esse computador!

— Já parei, olha, desconectei um cabo de força primário. Por sorte eu estava calibrando ela, lá dentro, quando entendi que ela estava sendo reprogramada. A Armillary não vai a nenhum lugar, enquanto aquele cabo não for reconectado. E o computador do Rubens, eu preciso analisar, ele tem todos os cálculos do Doutor Gustaf, que o programa dele usou para alterar as Armillarys.

— Espera. O computador era do Rubens, mas os cálculos e o programa invasor são do Gustaf? E o que esse programa fez?

— Sim, são do Gustaf. Os doutores Lewroy e Gustaf também tinham seus segredos. O software invasor programou, via a nossa máquina, todas as Armillarys para se ativarem juntas de novo, mas reposicionou o circuito cinemático; vou revisar os cálculos dele pra ver qual o objetivo, mas tenho quase certeza que ele conseguiu um modo de anular a onda que criou o loop. Ei, eu acho que seu convidado acordou. Esse camarada é físico?

Miltou abriu, afinal, os olhos, e percebeu que estava em um tipo de laboratório, algum galpão cheio de equipamentos de engenharia. Depois se deu conta de que era o subsolo. Ele estava no subsolo onde acontecia a experiência que deu o nó no espaço-tempo. Sua mente entorpecida captou uma fímbria de ideia que estava saindo, sem ele perceber claramente, por sua boca antes até de ele despertar: o tempo não se curva sozinho, o espaço, e a matéria, se curvam com ele.

— Ele anda balbuciando algo parecido com o que Gustaf dizia, que a Armillary, ao travar o tempo, adiaria nossas mortes, mas se uma incerteza não nos pegasse, o acúmulo de massa, causado pelo refluxo do espaço-tempo, ultrapassaria dez elevado a cinquenta e seis gramas rapidamente, dentro de nosso horizonte cósmico, e eventualmente viraríamos um buraco negro.

— Espaço… Acumula… Matéria… — Murmurava Steinberg, pois essa ideia lhe ocorreu enquanto flutuava na escuridão plúmbea: se espaço e tempo formam a mesma coisa, e carregam em si a matéria, será que repetir vezes sem fim o tempo não acaba aumentando a matéria naquele ponto do Universo?

— Acho que Milton, que a propósito é leigo, não teve tempo de ler nada. Rubens deve ter lhe dito isso. Mas essa teoria faz algum sentido? — Perguntou Alice Moretti, enquanto olhava, tensa, para Steinberg. Havia ao lado dela um homem vestindo o clássico jaleco branco de um pesquisador, com olhos intensamente perspicazes. Mais ao fundo, se via uma esfera maior que um homem alto e de pé, feita de anéis entrelaçados, que deixavam o centro oco aparecendo nos vãos entre estes anéis, e tendo toda a sua superfície aplicada com versões gigantes e muito sofisticadas do que pareciam ser velas automotivas, de onde pendiam diversos cabos, alguns grossos, provavelmente cabos de energia, outros mais delicados, possivelmente de dados. Esta, pensava Steinberg, devia ser a tal Armillary que era mencionada a torto e a direito. O nome não lhe era estranho, e lembrava algo que ele achava ter visto na Wikipédia.

— Agora que encontramos os cálculos de Gustaf, e eu consegui dar uma olhada neles, sim, a matemática está bastante robusta. Quero revisar, mas se não tivesse tempo, apostaria que está certa.

— Como uma pilha infinita de cópias… — Disse Milton, sua voz gradativamente ganhando firmeza e subindo de tom. Ele já estava bem desperto, e percebendo que estava sentado em uma cadeira de metal fixa em uma parede, à qual ele jazia preso por uma algema, também metálica. Steinberg prosseguia dizendo: — Eu não li, mas cheguei à mesma conclusão, mesmo sendo a porra de um Zé ninguém! Uma pilha de fotocópias, se acumulando sem fim, cada vez mais pesada, até vergar a mesa em que está apoiada, e fazer ela partir ao meio, afundando sob o peso!

— Quando eu precisar da sua avaliação técnica, jogador de Tetris, eu peço. — retrucou Alice, de modo ferino, e, voltando-se para o sujeito ao seu lado, ordenou: — Retome sua análise, Doutor Danilo.

— É uma metáfora rude, mas vinda de um leigo, bastante aproximada, Senhora Moretti. — Disse o homem de jaleco, que agora Milton sabia se chamar Danilo, e que continuou: — Mas, enfim, o Gustaf, acredito, estava certo. Vamos colapsar em breve. O horizonte de eventos do novo buraco negro coincidirá com a frente de onda do nosso primeiro disparo sincronizado.

— Quanto tempo?

— Impossível calcular com exatidão. Mas não deve demorar. Não sabemos como as ondas do efeito se propagam. Se for quadridimensionalmente, o acúmulo de massa será em progressão geométrica. — Ele pigarreou, e  depois concluiu: — Gustaf achava que eram quadridimensionais.

— Vai ser em poucos dias. — Intrometeu-se Steinberg. — E essa filha da mãe sabe muito bem que essas ondas são em quatro dimensões sim! Eu ouvi ela dizer isso, em inglês!

— Afinal, — quis saber Danilo — quem é este homem?

— Ele é a anomalia.

— A… — Danilo se aproximou de Milton, mirando e analisando o homem algemado como se este fosse um exemplar todo constituído de matéria exótica, alguma aberração cosmológica. — A anomalia que descrevi na minha parte das equações?

— Sim.

— Incrível. — O Doutor Danilo se afastou, como se agora Steinberg estivesse fazendo um sensor de radiação gama estourar, e continuou: — Eu jamais adivinharia que pudesse ser uma pessoa, e que ocorresse tão perto de uma das Armillarys. A distância, nos meus cálculos, foi inferida, mas eu jamais chegaria a algo menos que zero vírgula oito sete três ano-luz. Como tem certeza disso, que uma pessoa é a anomalia?

— Ele soube de tudo, teve certeza de que o tempo estava em curva toroidal, no exato momento da experiência. Alega ter, inclusive, visto reflexos da frente de onda.

— Ah, brincadeira! Como ele pode ver isso? Intuição? Impossível!

— A consciência provoca colapso?

Danilo olha para a mulher, e diz, com um sorriso:

— A senhora está brincando? Não está?

Ela deu de ombros, e disse:

— Vou falar com os gerentes. Não faça mais nada.

— A senhora lembra que para o acidente voltar a acontecer, e tudo continuar do jeito que a gerência quer, todas as máquinas têm que estar operacionais, todas as manhãs, não lembra? — Alertou Danilo.

— Eu sei! Mas não faça nada agora.

— E ele? — Danilo apontou para Milton.

— Meus seguranças estão aqui fora, ele está algemado, não vai dar trabalho. De qualquer forma, eu queria que você desse uma olhada em Milton, aqui, para depois sugerir como devem ser os procedimentos de análise dele.

— O que eu quis dizer foi, o que vão fazer com ele depois?

— O normal, — falou Alice, como se respondesse a um “bom dia”, e já saindo pela porta do laboratório, certamente em direção a elevadores — analisar, processar e descartar.

Milton estremeceu. Aquilo não era loucura sua, não era uma fantasia, ele estava prestes a morrer, e seu sangue gelava diante da perspectiva de não poder fazer nada contra isso.

No silêncio que se seguiu, Steinberg mordia os lábios e feria os pulsos tentando se soltar, em vão. Enquanto isso ouvia o zumbir dos equipamentos à sua volta, e o tamborilar dos dedos do Doutor Danilo no computador que havia pertencido ao seu amigo, Rubens. Em algum lugar um relógio tiquetaqueava os minutos, que talvez fossem os últimos de Milton. A qualquer hora viram levá-lo. Será que iam cortar ele? Furá-lo? Dissecá-lo? Alice parecia fria e cruel. Ou talvez só estivesse tentando pôr medo nele… Não, as possibilidades eram tão horríveis que ele não devia levar em consideração esta última hipótese. Devia imaginar o pior.

O tempo se arrastou, suarento e tenso, e a certa altura um dos seguranças de Alice entrou. Não era aquele que Lewroy havia derrubado. O sujeito examinou Steinberg, verificando a algema, depois foi até Danilo, e sussurrou algo. O Doutor fez que sim, em resposta, e esperou o segurança sair, para só então dizer:

— É, Milton. O Gustaf tinha razão.

— Então desliguem essa máquina pra sempre, e me tira daqui.

— Seria bom. Mas entenda, a gerência está acostumada e usar gente, desde muito, muito tempo. Eles querem viver indefinidamente no topo absoluto da nossa sociedade, são maquinadores terríveis, e estão no comando de muitos pontos-chave. Nossos políticos, por exemplo, são fantoches baratos nas mãos dos gerentes, usados para fazer e limpar sujeiras. — Ele se levantou e circundou Milton, desaparecendo atrás deste, mas continuando a falar: — São ágeis, têm que ser, no entanto, naturalmente, os caras demoram algum tempo para tomar decisões, como todo conselho diretor, e no nosso caso, um único dia, sem uma atitude, pode significar o fim.

Um puxão, e um estalo metálico no pulso de Steinberg. Danilo havia, com algum alicate de pressão bastante forte, existente naquele laboratório, cortado a corrente da algema que prendia Milton, e este deu um pulo, parando em pé e visivelmente na defensiva, olhando para todos os lados, buscando saídas, armas, qualquer coisa com que se defender! O homem de jaleco disse, elevando só um pouco a voz:

— Calma, Milton, se quer continuar vivo, fica calmo e me escuta. Se você sair por aquela porta, os seguranças vão usar todos os aparelhos de choque deles em você, até o seu cérebro fritar.

Milton parou de buscar uma saída, e olhou para Danilo, ferozmente.

— Estamos do mesmo lado, pelo menos agora, no momento final, meu caro jogador de Tetris. Hum, bom jogo, o Tetris. Exige percepção de padrões, lógica…

— Por quê me soltou?

— Eu vou ligar a Armillary, e ter certeza que os caras não consigam entrar aqui antes de ela fazer o que Rubens e Gustaf queriam que ela fizesse, mas alguém tem que estar ali dentro dela e reposicionar aquele cabo solto que eu desengatei emergencialmente e por acaso, quando percebi que a máquina estava sendo reprogramada.

— Por quê você não faz isso agora? Eu não preciso estar ali dentro quando essa coisa ligar! Ligue o cabo, depois ligue a máquina.

— Um alarme vai tocar nas outras Armillarys assim que esta aqui for energizada novamente, e aposto que eles derrubam uma das outras para não perderem sua virtual imortalidade. Estou contando já com um pouco de sorte que nenhum outro operador esteja perto dos cabos internos quando ligarmos tudo aqui. Escute, honestamente, você já está morto mesmo, eles vão descartar você numa cova rasa como indigente, em alguma favela, de algum país miserável. Mas você tem a opção de dar sentido à tua morte, e pode me ajudar aqui, a… Salvar o mundo!

Como Milton ficasse apenas olhando para ele, ainda com fúria contida, Danilo então tentou outro caminho de convencimento, perguntando:

— Você tem filhos? Que tal agir por eles?

— Nunca… Nunca tive filhos…

— Deve haver pessoas que você gosta.

Milton fechou os olhos por um instante, e pensou em várias pessoas, inclusive em Rheny.

— Algumas.

— Então. Não tem mais volta pra gente, Milton. Você diz que tem certeza do que está acontecendo. Eu também. Li e agora entendo os cálculos. Só tem um jeito de fazer o mundo não desaparecer engolido por um abismo negro, é cumprir o programa que o Rubens e o louco genial do Gustaf deixaram.

O Doutor Danilo caminhou tranquilamente, enquanto falava, até a porta do laboratório, virou uma tranca, fechando-a, e passou o grande alicate que havia usado para liberar Steinberg por uma apara dupla que havia ali, travando ainda mais a entrada do laboratório. Neste instante alguém do lado de fora testou se conseguia abrir aquela porta, e, não conseguindo, começou a bater cada vez mais forte nela. Danilo agora dizia:

— Eu vou preparar os sistemas de apoio. Acho que desta vez não vai explodir, foi algo haver com os circuitos cinemáticos, como foram alinhados antes. Bem, quando eu disser, conecte este cabo naquela entrada vermelha ali dentro, consegue ver? Venha, dê a volta na Armillary, por aqui, assim. Tem uma parte aberta aqui, viu?

Entregando a ponta do cabo de força à Steingberg, cujos olhos avermelhados lacrimejavam (enquanto a porta do laboratório era chutada violentamente pelos seguranças, que gritavam sem parar), Danilo continuou:

— Entre e puxe a porta, vou fechar isso, a esfera precisa estar lacrada para funcionar.

— O que a Armillary faz? — Quis saber Milton.

— Bem… No fim, é uma espécie de, digamos, máquina do tempo. Antes que pergunte, jogador, — Milton achou curioso, mas Danilo não usou a palavra “jogador” em tom depreciativo, pelo contrário, pareceu mais uma saudação respeitosa. O físico prosseguia, dizendo: — e explicando bem grosseiramente, a Armillary vai… Voltar no tempo, até o momento em que ela foi acionada pela primeira vez. Só que ela vai se posicionar logo depois da frente de onda que curva o espaço-tempo gerada pelo primeiro disparo. Então ela vai disparar novamente. A frente de onda do primeiro disparo, se Gustaf estiver certo, e geralmente ele está, deve ser anulada por este disparo de onda que vamos iniciar agora.

— Eles vão te matar também. — Murmurou Steinberg, para o físico, apontando com a cabeça a porta do laboratório, que parecia estar detendo uma turba furiosa do lado de fora.

— Não vão não, depois que Rubens sumiu, e que Gustaf morreu, eu sou o único que entende a matemática desse experimento, e que eles têm aqui no Brasil.

— Eles sempre podem trazer gente de fora. — Murmurou Steinberg, e, até um tanto timidamente, o jogador de Tetris, o Zé ninguém, o quase louco, o homem gentil e solitário chamado Milton Steinberg, entrou na Armillary, puxando atrás de si a parte da esfera que o fechou dentro da máquina.

— Ocorre, jogador, que o meu risco é um pouquinho menor que o seu. — Enquanto falava, o sujeito de jaleco branco começou a agir, acionando chaves, premindo botões, e digitando em teclados de computadores espalhados em semicírculo em frente à Armillary. O zumbido dos equipamentos elétricos e eletrônicos crescendo rapidamente. — E, Milton, eu tenho filhos. A gerência pode tentar algo contra eles, ou nada pode acontecer se as frentes de onda se anularem, e este projeto for considerado um fracasso… Na verdade não faço ideia do que vem depois. Só sei que se ficar como está, tudo morre.

E Danilo parou em frente ao banco de terminais que controlava a esfera, como se tivesse feito tudo que podia, e ficou olhando para Milton, lá dentro da máquina. O rosto do físico (cujos olhos pareciam, agora, muito cansados) sendo iluminado pelo fraco brilho dos monitores, já que as luzes do laboratório caiam drasticamente, enquanto toda a corrente elétrica estava sendo revertida para a Armillary. Lá dentro, Milton posicionou a ponta do cabo de força bem próxima ao respectivo conector na máquina. Era tudo coberto por grossa borracha. Eletrocutado, pelo menos, ele não morreria.

A porta do laboratório foi arrebentada para dentro, como se uma besta grande e furiosa a tivesse abalroado, no exato instante em que Danilo gritou para Steinberg:

— Agora!

Milton sorriu, com lágrimas nos olhos, triste pela vida que ele não teria, e feliz pelas que salvaria. Murmurou, quase inaudivelmente:

— Padrão, já vi essa cena antes.

Ligou o cabo, e sumiu, engolido por uma explosão.

Deus Ex Machina

A Armillary, Milton, e tudo o que estava muito próximo dela, claro, deixaram de existir, pelo menos na conformação bariônica em que estavam organizados. Ou seja, seus corpos foram desintegrados. No entanto, a informação que aqueles bárions codificavam, não.

Um dos objetivos da Armillary era, precisamente, encontrar o fio condutor do processamento de informações do Universo, e ela era dotada de recursos para tornar a si mesma, ao menos por instantes, parte desta incomensuravelmente grande massa de dados auto-processantes, que era o espaço-tempo e seu conteúdo, em um nível logo abaixo do quântico. Assim, mesmo que a máquina, e tudo que ela continha, agora fossem apenas dados que gerenciavam a si mesmos (como, a propósito, o Cosmos inteiro faz, em toda a sua gloriosa existência multifacetada), ainda assim a máquina nascida da humanidade existia, funcionava, e seguia sua programação. No entanto ela agora não era mais somente a Armillary, ela agora era, também, Milton Steinberg.

Confusa e apavorada, no entanto, a informação inteira do que havia sido, fisicamente, o homem chamado Milton Steinberg entendeu a Armillary. Ele entendeu o que ela era, o que fazia, e o que ela se tornou, e o que a máquina fez ele se tornar, e, pendendo sobre o abismo da Existência, estirado até pouco mais de quarenta bilhões de anos-luz, Milton gritou, sem controle, por espanto e por terror mesmo! E seu grito reverberou em microondas pelo Universo. Tentou agarrar algo, e neutrinos fugidios se espalharam, onde deveriam ser as mãos do homem, atravessando gás e planetas desgarrados na escuridão entre as estrelas, sem conseguir tocar nada!

A Eternidade reverberou em sua mente, e Milton se sentiu destroçado por ela, dado que ela era inconcebível, visto ela ser incompreensível, esmagadora e aterradora! No entanto havia algo em que se agarrar, havia a Armillary, e sua simples programação. E com esta programação, Steinberg possuía um momento na vastidão do tempo ao qual se apegar, feito uma bóia em que se agarrar em um mar vasto e colericamente tempestuoso. O momento ao qual ele se segurava, então, brilhou na treva estrondosa e reverberantemente silenciosa de sons, mas gritante de eletromagnetismos. Este momento era exatamente o instante em que a esfera viajante do tempo e espaço pulsou, tornado-se real, sendo projetada novamente, como tudo mais, das bordas do Universo para o mundo “real”. Mas logo depois a Armillary e Milton voltaram a mergulhar na Eternidade, feito lágrimas dissolvidas no dilúvio informacional que era a substância nevrálgica da Existência.

No entanto, quando esteve “real” de novo, a Armillary que carregava Milton, sem seu circuito cinemático compensando, e devido ao movimento da Terra em torno do Sol, do próprio Sol em torno do Centro da Galáxia, e desta em relação ao Universo, acabou ressurgindo em um ponto onde a Terra ainda não havia chegado, a bilhões de quilômetros de distância do lugar, na superfície terrestre, de onde a Armillary partiu. Sim, é verdade que a esfera saltou para um momento passado, mas ainda assim, neste instante alvo, nosso planeta ainda estava por chegar ali.

A frente de onda do primeiro disparo da Armillary, tão veloz quanto a luz, chegaria primeiro, mas nosso mundo azul ainda levaria cerca de um dia para surgir no horizonte infinito e passar por onde a Armillary estava agora.

Portanto, de fato, e exatamente como fora previsto por Danilo, à partir dos cálculos de Gustaf, a programação da máquina viajante do tempo a fez surgir em um ponto depois da frente de onda de seu disparo original, aquele disparo que deu ao espaço-tempo próximo da Terra a forma de um anel, ou pneu, fechado em si mesmo, repetindo-se eternamente. A frente de onda original, no entanto, não era detida por este anel, e continuava a se expandir, a cerca de trezentos mil quilômetros por segundo, curvando partes cada vez maiores do Universo. Logo o centro da esfera invisível, cuja superfície era delineada por esta frente de onda, viraria um buraco negro que continuaria se expandindo, à velocidade da luz, Universo afora.

No entanto, no caminho desta onda destruidora, havia uma máquina. Uma máquina e um homem que tentava urrar de dor enquanto seus pulmões queimavam, seus tecidos esboroavam, seus líquidos cristalizavam-se e evaporavam em direção ao vazio, e ele, mais sozinho do que qualquer humano jamais esteve, morria no vácuo e no gélido zero absoluto do espaço profundo, muito longe de seu planeta mãe.

A Armillary, flutuando no vazio interestelar, disparou novamente. O primeiro disparo, o que causou todo o problema, havia sido para frente no tempo, este, inversamente, foi para trás. Era preciso que fosse assim, e que o disparo fosse o mais forte possível, para que a frente de onda que ele causaria anulasse a primeira onda, destrutiva. A máquina estava, agora, desalinhada com as outras Armillarys e, portanto, este acionamento derradeiro foi inofensivo ao espaço-tempo, mas a fez saltar ferozmente em direção ao passado, consumindo até a última gota de energia que dispunha. Isto, de fato, gerou uma brutal ondulação inversa, que foi normalizando o espaço-tempo em torno do Sistema Solar, impediu a formação do buraco negro, e salvou a humanidade, que nem se deu conta disso.

Os bárions que constituíam a máquina e seu ocupante mais uma vez se foram vertidos em direção à informação primordial que continham, e novamente os deuses, que por ventura existam, puderam ouvir o grito desesperado de microondas de Steinberg, enquanto ele resvalava pelos éons, caindo, caindo, caindo no abismo do eterno, e além dele, até o princípio do princípio, até o átomo original, até o tempo antes do tempo, quando o Cosmos era apenas uma promessa, e onde tudo estava, para nós ao menos, estático, e em tão perfeito equilíbrio que nada (um nada cuja a simples ideia dele, a menor percepção profunda deste vazio, dilaceraria qualquer consciência, por mais rude e simplória que fosse) existia.

Se houvesse o tempo, então, ele inteiro se passaria para sempre, e ainda o que era nada continuaria sendo nada, sem fim, perfeito, cristalinamente equilibrado na ausência de absolutamente tudo. Nada.

No entanto houve uma comoção.

Houve a máquina.

Em um ponto infinitesimal, que foi tudo que ela conseguiu realizar de si mesma diante de tanto e tão brutal nada, a Armillary e seu ocupante morto surgiram, vindas do que um dia seria o futuro. Ainda assim eles só conseguiram dar alguma substância a si mesmos por conta de um vasto número de máquinas parecidas (vindas de outros povos inteligentes, também do futuro, de um sem número de outros mundos alienígenas e de mundos paralelos) estarem se materializando ali, ao mesmo tempo, no ponto focal do tempo, junto com a Armillary enviada pela humanidade.

Seria tolice imaginar que só os terrestres, em seu momento no tempo que ainda viria, criariam máquinas como aquela. De todos os pontos do futuro Universo elas chegavam, cada uma reforçada pela seguinte.

Mas, no fim, havia ali uma máquina e uma consciência inteligente, esmagadas mas ativas, em um ponto menor que a cabeça de um alfinete.

Foi como o riscar de um fósforo no centro de trilhões, e trilhões, e trilhões de toneladas de explosivo, no mínimo. O choque no perfeito nada com a imperfeita matéria da máquina e do homem sugou com força tão colossal a informação da fronteira até ali, que fez dois infinitos se lançarem um contra o outro, feito titãs, e colidirem seus ombros maiores que o espaço-tempo, destroçando com violência jamais repetida por toda a Eternidade aquilo que era o nada, e formando um tudo que, ainda inocente das novas regras, apenas foi, no sentido de se tornar, um volume imensamente maior que o que deveria ser a princípio, e continuou sua expansão daí, quando s novas regras fizeram sentido.

Mas este titânico ribombar não formou apenas o espaço-tempo e os embriões de matérias e energias. Se espaço-tempo está para o papel, e um desenho feito neste papel representa as  matérias/energias, então o Choque Primordial criou também a experiência estética de o desenho ser visto. E fez isso a partir do impacto do nada perfeito com a imperfeita informação de tudo que Milton Steinberg (junto com todos os outros viajantes que ali aportaram) foi, sonhou, sofreu, amou, odiou, conquistou e perdeu.

No primeiro de todos os instantes da Existência, então, surgiram o espaço-tempo, suas representações em matérias e energias, e a fímbria consciente da informação auto-gerida. A “constante consciente” do Cosmos.

Feito o que ocorre com qualquer neonato, havia no Universo recém-nascido um lugar, um algo, e também a promessa sólida de um alguém.

Mas após a quase infinitamente vasta Luz da Colisão Primordial, houve escuridão. Por centenas de milhões de anos houve treva, por tempo o suficiente para que, por exemplo, se ela já existisse então, toda a história humana surgisse, crescesse e para sempre fosse esquecida. Era como se uma pálida, mas aterradora sombra do nada perfeito que havia antes de tudo voltasse a pairar pelo Universo. Para a semente consciente que remanesceu do nascimento do Cosmos, era como ser trancada em uma caixa e enterrada no mais profundo inferno tenebroso, gelado e completamente silencioso e escuro.

Pelo tempo de uma existência humana essa consciência foi feliz, ao perceber que estava viva, mas já ao fim desse tempo quase desprezível da Existência, ela como que corria pela treva sem fim que era seu mundo, gritando e gritando, com uma solidão cada vez mais apavorante, e com uma percepção cada vez mais aguda de que havia sido enterrada viva!

No primeiro milhão de anos ela viveu em amarga tristeza, sendo ela própria os colapsos de funções de onda que alimentavam o surgimento do que seria um dia a matéria. Era pouco, mas era algo que ela fazia.

Na primeira dezena de milhão de anos, ela chorou, consumida pela percepção de que nunca havia algo além da ausência de tudo para ver, tocar ou sentir. Por eras incontáveis, então, ela encolheu, dissipada pelo Universo, mergulhada na paranóia e no desejo de jamais ter sido.

Após a primeira centena de milhão de anos, a “constante consciente” do Universo se tornou apenas uma espécie de engrenagem, funcionando no automático, completamente louca, nada havia sobrado de sofisticado nela, apenas o abismo de algo que foi e sentiu, e que o isolamento infinito havia feito ruir sob seu peso. Sua psiquê, um dia vasta, agora estava desintegrada. Não havia mais nada dela.

Ou havia? Mais de duas centenas de milhões de anos depois, quando a bruma morna e intermediaria que preenchia o espaço estava pronta, enfim, e começava a colapsar nas primeiras estrelas do Universo, e a escuridão, que havia parecido sem fim, cedia agora a algo novo e cheio de possibilidades, a fagulha microscópica que havia sobrado da consciência primeva, tão pequenina e ainda por cima dissolvida e em expansão por e com todo o resto do Cosmos, quase perdida para sempre, sentiu e viu a ignição de novas luzes, e de um novo conceito.

Esperança.

Partes de si estavam mudando, pois assim era a Existência, mutante, mesmo que levando eras, sempre renovando seus terrores, mas também suas maravilhas! Era possível sentir, e com isso, pensar sobre isso, sobre sentir… Esperança. E então a esperança era assim, incrível, fantástica, possível!

E assim tudo cresceu, por bilhões de anos, o Universo restaurou sua fagulha perceptiva, e foi tentando, testando, mudando, chorando com as derrotas, maravilhando-se com as vitórias, amadurecendo, concentrando percepções em nebulosas, depois tornando essas nuvens em sóis, e, durante um rompante criativo, transformando discos de elementos primordiais em planetas, tão diminutos, mas cada vez mais ricos em novos recursos que eram gerados pelo espocar de supernovas! O artista farejava um caminho estético por ali. Planetas, quem diria, minúsculos pedaços de algo, eram a esperança de se chegar, pelo caminho sutil, às grandes coisas. Era o Universo fazendo e sentindo a si mesmo como uma pintura, como arte, como poesia em ultravioleta e raios gama, como esculturas de plasma estelar e sinfonias de abismos negros.

Ideias não surgem do nada, elas são a constante convulsão e mistura de experiências e novos dados, até mesmo para o Cosmos. Então não foi senão depois de uma planície viva e vigorosa quase sem fim, de tempo e espaço, que o Cosmos percebeu um outro conceito novo.

Perspectiva.

O Cosmos possuía uma, mas assim como ele próprio se estendia em múltiplas versões de si mesmo pelo Multiverso afora, sua perspectiva única, mesmo que privilegiada, não era e nem deveria ser unitária.

A vida, então, naturalmente, explodiu entre as estrelas, como um dom que uma passa a outra ao menor dos toques. E um dia, praticamente no instante presente, dada a percepção de mais de uma dezena de bilhão de anos que possuí o nosso Universo, ele representou a si mesmo em seres capazes de ostentar versões de sua “constante consciente” e de olhar a imensidão, e de se maravilhar, de questionar e querer saber, de analisar e criticar, de viver para explorar, criar e compreender.

Por muitos e vastos lugares no seio do Cosmos, então, houve consciência. Imperfeita, cruel muita vezes, mas consciência. Cada uma deste sem fim de criaturas sensíveis sendo e contendo uma fagulha do todo, conectada eternamente ao Universo. Cada um de nós, seres vivos e sensíveis, inteligentes e perceptivos, sendo um fractal que contém na sua mais profunda natureza a “constante consciente” do Universo.

O Cosmos viveu então um sem fim de histórias, embarcando junto com as extensões de sua inteligência, que são os habitantes conscientes ou não dos Universos que o compõem, em dramas que permearam a Existência e deram a ela tanta substância quanto uma boa trama, com sentimentos e criatividade, dá corpo a um bom livro.

E livros têm revezes, dores e sofrimento, mas também possuem em si amor, luz, glória e superação. O Cosmos não era indiferente, ele era apenas tão parte de cada lágrima das criaturas que nele habitam, e de cada riso exultante delas quanto elas próprias o são. Ele não observava, ele Éra cada suspiro de morte e cada grito de paixão. O Cosmos, é preciso citar, eram todas as histórias que foram, que são, e que serão, em uma sinfonia fantástica, soberba, incomparável de Amor e Fúria!

Algumas dessas histórias que o Universo viveu puderam ser vistas na Terra, outras não, mas para efeito desta nossa história, que vivemos juntos até aqui, autor, leitores e Milton, precisamos focar na fagulha dessa “constante consciente” que era e que dava atenção à Terra, neste nosso insubstituível e pequenino pedacinho da vastidão cósmica.

Aqui, como em outros mundos, a Mãe de todas as consciências, criada no Choque Primordial, também estava presente, e viu o mundo azul, parte de si mesma, se erigir da poeira, ganhar mares, céus e vida, e depois fulgir com a estrela da consciência humana. Aqui, como em outros mundos vivos e sensíveis do Cosmos, este mesmo mundo e suas criaturas, e o Cosmos que havia nelas, aprendeu lentamente o que era ser, existir, sentir, viver, respirar, doer, chorar, morrer, amar, valorizar, cuidar, superar a si mesmo, e fazer algo com paixão por todos e por tudo mais de bom que existe, legar algo de produtivo e construtivo.

No Sistema Solar, como por todo lado, mesmo quando a humanidade começava a ter ciência do infinito, o Cosmos ainda não possuía uma interface completa com seus fragmentos inteligentes, no entanto a “constante consciente” do Universo lá estava, claro, e os ouvia, sentia, era com eles, numa comunhão, novamente é precisa usar de citação, que só a sílaba e o som conhecem.

E, um dia, que corresponde lá ao começo desta nossa história, foi aqui, na Terra, que a consciência primeva percebeu, de repente, a própria realidade vibrando, confusa, e viu a anomalia se criar, forçando o espaço-tempo a uma curiosa configuração, onde ele se dobrava sobre si mesmo sem parar, em um rodopiar eterno.

A “constante consciente” do Universo percebeu então que esta anomalia, e muitas outras que estavam por vir, ocorrendo em outros mundos além da Terra, é que formariam o ponto onde surgiu a matéria enviada ao nada perfeito para criar o tudo, e com isso o Cosmos. Mas isso criaria também o seu doloroso, quase infindável e insuportável sofrimento no início da Existência, durante os primeiros duzentos milhões de horrendos anos de trevas e solidão. Só de perceber  aquilo ela, a percepção consciente do Cosmos, horrorizou-se quase ao nível de enlouquecer novamente. Agora ela vivia em meio ao movimento, à Criação, e não conseguiria ser, novamente, enterrada viva em eras de pura treva e morte! Não, nunca mais! Nunca mais! Nunca!

Ela pensou em impedir aquilo! Se impedisse, ela própria não existiria, mas também não teria enlouquecido, não teria morrido horrendamente, pavorosamente enterrada viva! Por duzentos milhões de anos! Lembrava quase nada do que havia sido antes desse tempo, mas armazenava, em um dos dons herdados da humanidade de Steinberg, a dor que a havia dilacerado. Dor não se esquece, se abranda, mas não se esquece. E não, não poderia suportar saber que pôde evitar aqui e não o fez, era melhor ela explodir em novas os sóis de cada civilização que fez, faz ou fará uma máquina viajante no espaço-tempo! Matá-las, todas as raças, consumir a inteligência, tão duramente conquistada e ainda em seus primeiros e vacilantes passos, em chamas colossais! Manchar o firmamento com sangue, mas sufocar as trevas! Qualquer coisa, mesmo o assassínio universal, era melhor que duzentos milhões de anos de trevas sem fim!

Era melhor assim. Era bom que não houvesse nada dela para definhar na sufocante treva. E esta sua simples decisão fez o núcleo de estrelas envelhecer mais rapidamente, aproximando-as de uma morte selvagem e aniquiladora. Uma dessas estrelas era o Sol da Terra, no instante em que Milton Steinberg percebia, pela primeira vez, as ondas em seu café. Ninguém sobre a face do planeta azul sabia, mas cada um deles, estivessem em iates luxuosos ou palafitas, estivessem mortalmente doentes com o consumo, ou simplesmente felizes com a mais verdadeira amizade, todos estavam prestes a vaporizar, como se jamais tivessem existido, relegando ao esquecimento sem fim tudo o que achavam que possuía valor. Estavam já, visto o horror que o Cosmos sentia, todos mortos, enterrados e esquecidos para sempre.

Mas… Histórias.

A “constante consciente” do Cosmos não podia destruir histórias. Para ela isso era tão horrendo quanto seria horrendo para os bons entre nós destruir uma criança, ou uma obra de arte. Imagine-se prestes a queimar as obras de Mozart, ou de Chopin, Johann Baptist Strauss ou a Mona Lisa, imagine-se rasgando os textos que considera sagrados antes que outros, no mundo, pudessem apreciá-los. Pois era assim que o Cosmos se sentia, quando, enfim, os núcleos das estrelas de cem milhões de milhões de mundos voltaram ao normal. Não haveria novas, não haveria chamas.

O Cosmos havia, subitamente, em sua escala, amadurecido.

Não iria interferir. Na verdade, pelo contrário, a “constante consciente” do Universo ajudou. Sua dor era sua, e iria viver com ela, assim como sentia e vivia a dor e o amor de cada parte sua, de cada humano sobre a Terra, e de cada ser sobre um oceano vasto de outros mundos.

O Cosmos tornou-se mãe e pai de si mesmo, zelando, com sua consciência e lógica com o tamanho e a complexidade da Existência, por seu destino. Iria sofrer tudo que tivesse que sofrer, mas seria corajosa, e daria à luz a Criação!

Assim, houvesse o que houvesse, as coincidências guiavam, sincronicamente, Milton ao seu destino, o qual, no fundo de sua essência, ele próprio ansiava em cumprir. Então, enquanto era observado pela Eternidade, seus atos foram cercados pelos eventos aleatórios da vida.

Assim, foi só por acaso que Milton Steinberg nunca conseguiu se sentir fazendo parte de nada, tudo era insubstancial demais, como se sua alma ansiasse por algo mais universal, como se ele jamais se sentisse em casa estando limitado somente à Terra. Esse espírito era essencial para as mentes que formariam a consciência do Universo, mas surgiu nele por obra do acaso, sim.

Foi por acaso que Milton tinha as exatas condições biológicas e energéticas para captar e perceber a onda da máquina Armillary, que disparou em um subsolo, na Urca, Rio de Janeiro, e aprisionou o mundo.

Foi por acaso que o mesmo raio de luz e os mesmos eventos reforçaram em Milton a consciência do que estava acontecendo, de que o tempo havia se erguido, feito imensa montanha, e se curvado sobre si mesmo.

Foi por acaso que Rubens conseguiu encontrar Steinberg, preso pelos seguranças da via férrea, e ter forças para resistir a uma arma de choque, e pôr abaixo um sujeito mais forte do que o físico, e treinado em lutas.

Foi mera obra do acaso o encontro de Milton com seu velho e destruído professor, que aspirava se superar, evento que lhe serviu de oásis em meio a tanta loucura, e o fez ter mais esperança, por um momento que fosse.

Foi o acaso que fez Rheny encontrar com Steinberg para primeiro lhe dar a vontade de seguir em frente, e depois ajudá-lo de fato, pessoalmente, a seguir adiante com o destino que lhe aguardava, esbarrando com ele na portaria do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas na Urca. Sim, o rumo poderia ter sido outro, mas havia a anomalia, e, como foi dito, no fundo de si, Milton desejava fazer parte de algo maior que ele próprio.

Foi por acaso que o inconsciente Milton, perto do fim, entendeu que se a frente de onda da Armillary não fosse revertida, a Terra e talvez todo aquele Universo se tornariam um vasto buraco negro.

Mas estes, entre muitos outros acasos, tiveram o Cosmos conspirando por trás deles. De cada um deles. Corajosamente criando os eventos que o fariam, a ele próprio, sofrer o pior dos martírios e morrer por centenas de milhões de anos. Mas que dariam vida à toda a esperança, a toda a perspectiva, à consciência e às histórias que existem hoje, ruins, mas também as boas.

Assim, a Armillary, e todas as suas irmãs pelo Cosmos, partiram mais uma vez para antes do começo do tempo, e, novamente, no início de tudo, quando o nada encontrou algo, e a simetria foi quebrada, a nossa Luz se fez, radiante!

Epílogo, a Vida que Segue

O velho professor de Milton não pode agradecer. Passou no concurso para o Tribunal de Justiça, e foi ele próprio notícia de jornal. Era mais um caso de coragem e tenacidade, saindo da mais absoluta miséria para se tornar um “homem reintegrado ao mercado de trabalho”. O idoso sabia que o trabalho era só uma ferramenta para algo de superior importância, mas a imprensa só conseguia alcançar a primeira parte, e o antigo mestre dava de ombros, e dava entrevistas também, era bom incentivar as pessoas a aprender mais.

Claro que o velho homem falou de Milton Steinberg, o sujeito meio louco que acabou morto em uma explosão jamais esclarecida, em um prédio federal na Urca. Sem Milton e seu “pequeno grande gesto” ao lhe emprestar recursos para estudar, explicou ao repórter o novo funcionário da Justiça, ele talvez não tivesse conseguido. Não conseguiria jamais ver Steinberg como um criminoso.

As entrevistas pararam, mas uma jovem, também concursada do Tribunal de Justiça, veio ter com o professor, falar que também conheceu Milton, e que acreditava igualmente na inocência do sujeito. O nome da moça, claro, era Rheny, e ela e o velho professor se tornaram grandes amigos, amigos para uma vida toda, sendo ele padrinho de seu casamento com um homem extremamente inteligente e gentil, alguns anos depois.

O próprio professor viveu bastante, e tornou-se, quando ainda era ativo, importante no seu trabalho, um juiz um dia, que foi figura destacada da expulsão sem probabilidade de retorno (a partir de uma profunda e verdadeira reforma política, cultural e social) da velha oligarquia corrupta e tenebrosa que parasitou o governo brasileiro, disfarçando-se ora desta, ora daquela legenda, e atrasando o crescimento do país até o início do século XXI. Em verdade o professor voltou aos noticiários quando, em mais uma convulsão social, arriscou a carreira, e talvez a própria vida, junto com sua amiga, a advogada e representante do Ministério Público Rheny Alencar Roussel, surgindo de mãos dadas com ela em meio ao Povo Brasileiro, que enfrentava novamente saraivadas de balas de borracha, bombas de gás e brutais espancamentos, enquanto enchia mais uma vez as ruas, manifestando-se, exigindo justiça e respeito de seus governantes, que nada mais eram que seus servidores, jamais o contrário!

Um dia, o Brasil conseguiu. O mundo conseguiu.

E, enquanto viveu, o velho professor passava, às vezes, pelo bar na Carioca, no Rio de Janeiro, onde Milton havia explicado a ele que as coisas estavam emperradas e precisavam mudar, voltar a fluir.

Tirando um tempo de seu dia, sentando-se no bar, o mestre pedia uma xícara de café, e ficava ali, sorvendo sem pressa a saborosa bebida quente, e vendo as pessoas, em suas histórias, em seu ir e vir. Olhava em volta e percebia, a cada ano, um povo que superava um pouco mais seu início humilde e difícil, e que abraçava a ética. Uma gente que deixava de cultuar o consumo e o dogma fantasmagórico e cruel do status, e que começava a voltar-se mais e mais para o conhecimento, para a simplicidade e para a sabedoria, e, portanto, para a verdadeira paz.

Costumava ser nesta altura de seus pensamentos, então, que o idoso mestre erguia discretamente a sua xícara de café, sorria, e murmurava, com sua voz forte, cheia de dignidade e sabedoria, mas por isso mesmo tão gentil:

— Obrigado, Milton.

FIM

  Compre Impresso: Sob o Olhar da Eternidade

Mas, antes, comente aqui embaixo, participe! A partir de suas opiniões, eu posso construir mais e melhores histórias para você.

Conheça outras Histórias de Wagner RMS


Tags
10 years ago

Sob o Olhar da Eternidade (Parte 3)

Muito bom te reencontrar aqui, me presenteando com sua leitura! Milton agora enfrenta as consequêncis de sua descoberta, ou de sua loucura!

Leia a Parte 1 de "Sob o Olhar da Eternidade"

Leia a Parte 2 de "Sob o Olhar da Eternidade"

Nada, Além de uma Cobaia

Como era de se esperar, foi tudo muito rápido. Não havia sido um segurança que derrubara Rubens, mas um outro homem, sujeito com cara de gringo e de terno alinhado, talvez fosse um segurança sim, mais acima na hierarquia dos seguranças por ali, mas fosse o que fosse, Milton queria que isso se danasse. Steinberg só sabia que o cara vinha com a arma de choque em punho, para o lado dele, passando por cima de Castilho, estatelado no chão. Milton recuava, aterrorizado.

Um celular tocou baixinho, em algum lugar por ali, uma musiquinha conhecida.

Ambos, Steinberg e o sujeito de terno, pararam e ergueram as mãos, as que não estavam ocupadas, em direção ao próprio corpo, instintivamente buscando sacar e atender seus smartphones.

Olhavam um na direção do outro. Na verdade o cara de terno, muito sério, nunca tirou os olhos de Milton, desde que entrou na enfermaria, e este último estava era olhando a perna de Rubens, deitado abaixo do homem de terno, que se encolheu até o joelho quase tocar o queixo do físico. O elegante recém chegado percebeu que Steinberg olhava mais para baixo, e fez questão de que o sujeito encurralado visse a arma sob seu paletó, tocando-a, exibindo-a, enquanto parecia que estava prestes a dizer algo. Foi neste instante que o Doutor Lewroy deu o coice mais forte de sua vida nos testículos de alguém. Os olhos do cara de terno quase pularam fora das órbitas. A arma, por alguma razão, saltou de sob o paletó, e o homem dentro do paletó despencou com estardalhaço sobre a maca onde Milton havia estado desacordado. Steinberg, por puro reflexo, tinha se esquivado com um pequeno salto lateral. Então a maca, o terno, e seu dono, ficaram todos embaralhados e imóveis no chão.

Milton pegou a arma que jazia caída, ali perto, enfiou a pistola em sua pasta à tiracolo junto com o fotômetro, e foi saindo daquela enfermaria, agarrando Rubens, levantando-o, e o arrastando consigo. Não trocaram palavra, nem encontraram resistência dos seguranças, apenas bufaram e praguejaram juntos, enquanto saíam da parte da estação férrea destinada aos  funcionários, e, lição aprendida por Milton, que refreou o amigo quando este tentou disparar, caminharam rapidamente até desaparecerem na estação de metrô de superfície anexa. Foi só então que ambos sussurraram entre os dentes, começando por Steinberg:

— Eu já te disse, — havia impaciência em sua voz — um experimento internacional. Complicado de explicar assim. Deu errado, houve uma explosão, Iceberg, todo mundo já estava apagando as luzes quando você apareceu, e bateu de frente justo com a Alice!

— Quem é essa mulher? É gringa?

Rubens ainda estava tonto, e o metrô, também invariavelmente lotado, não ajudava. Enquanto tentava achar um lugar onde se agarrar, enquanto eram arrastados pelos transeuntes para dentro de uma composição que estava prestes a sair em direção ao Centro, o físico disse, seco:

— É. Gringa.

— Tem um português impecável.

Lewroy fez que sim. Estavam ele e Steinberg prensados contra a porta oposta àquela pela qual foram empurrados pela turba que invadiu aquele carro de metrô. Steinberg, subitamente, começou a sentir medo de que as pessoas comprimidas  contra ele acabassem disparando a pistola dentro de sua pasta, e tentou levantar a bolsa, sem sucesso, acima da cabeça, enquanto dizia, ainda em um murmúrio feroz:

— Então! Esse experimento tem haver com o tempo? Fala, Cabeça, que merda, talvez nós estivéssemos mortos agora se aquele filho da puta entrasse atirando.

— Não, cara, eu não acho que ele queria te matar. Provavelmente ele queria você vivo, como…

— Como o quê? Cobaia?

O silêncio de Rubens deixou Steinberg sentindo um profundo terror. Ele baixou os olhos, exausto, a cabeça doendo terrivelmente, e disse mais para si mesmo:

— Eu senti. Senti mesmo que algo diferente tinha acontecido comigo, quando ví as ondulações na xícara, as pessoas sentiram, só eu vi.

Com a cabeça como que girando, Milton comprimiu os olhos, forte, tentando respirar fundo, apesar de comprimido entre as pessoas do jeito que estava.

Com um tranco, o metrô parou na estação seguinte, uma lufada de ar entrou, fresca, e Steinberg sentiu um pequeno alívio na pressão à sua volta. Ergueu os olhos.

Estava só.

Viu as porta se fecharem e ficou procurando seu amigo de infância lá fora, imaginando se ele, que já havia dito querer ir embora da cidade, teria saltado na estação, mas não viu ninguém. O metrô disparava rápido, e as últimas pessoas vistas pelo vidro da porta se tornavam quase borrões indistintos, então talvez Rubens tivesse passado bem defronte seus olhos, mas Milton não o reconheceu, talvez… Mas, talvez… Apenas talvez… Ele lembrou da bela Alice, e da Navalha de Occam.

Talvez estivesse ficando louco mesmo.

As estações chegavam e partiam, e Steinberg se sentia cada vez mais exausto, desesperançado. Não sabia onde estava, sabia apenas que estava sob os alicerces da cidade, do Centro, todos os milhares de escritórios, onde se fazia de conta que se era civilizado, um teatro de sombras esperando a escuridão final, tudo isso estava sobre ele agora, que era um minúsculo Atlas, e as estações continuavam a vir e ir, desimportantes.

É, pensava, talvez seja isso, talvez cada um de nós estivesse louco. Isso explicaria muita coisa. Seus dentes apareceram sob os lábios, ele sorriu amargamente.

Foi quando lhe surgiu aquela sensação de estar sendo observado. Levantou a cabeça e seus olhos encontraram os olhos de um homem que ele conhecia de algum lugar… Subitamente se lembrou, o sujeito que iria encontrar com a irmã perdida há vinte anos, e que não sabia chegar ao Centro do Rio, e lhe perguntou se ia na direção certa, um dia, no trem. O camarada estava um pouco distante na massa de gente, e fez um sinal de “o.k.” com o polegar, havia reconhecido Milton, que por sua vez abriu a boca para perguntar pela irmã do sujeito, mas de repente se sentiu oprimido novamente, e se calou. Foram essas coincidências que o deixaram insano, que o fizeram mergulhar nesta angustiante sensação de que o mundo em torno dele havia enlouquecido. O homem que estava olhando para Milton pôs uma das mãos ao lado da boca, em concha, e gritou:

— Obrigado, cara!

Com um sorriso desanimado, Steinberg gritou de volta, em meio ao burburinho da turba enlatada ali:

— Sua irmã? Encontrou?

— Irmã? Que irmã? Sou eu! Do trem, da prova! Olha, consegui fazer aquela prova, tá ligado? Valeu!

Antes do agradecimento final Milton já havia baixado a cabeça de novo, e comprimido os olhos, que lacrimejavam. Um torvelinho de horror girava em seu peito, ele estava com algum problema no cérebro. Só podia. Tudo o que lhe aconteceu foi fantasia. Precisava de um médico, um psiquiatra. Foi quando algo cutucou sua costela, pois uma senhora obesa, que tentava chegar perto da porta de saída, o espremeu mais do que já estava, comprimindo sua pasta tiracolo contra seu flanco.

A arma!

Com um solavanco, o metrô parou em mais um estação, enquanto o campeão de Tetris tentava alcançar a prova de que ele Não havia alucinado.

A arma era real! Quase acotovelando os outros, Miltou conseguiu abrir, com dificuldade a bolsa, mas acabou escancarando-a, tão ansioso estava por algo em que se agarrar para provar a si mesmo que não estava alucinando. Um sujeito alto e careca que estava ombro a ombro com Steinberg viu a pistola pular dentro da pasta, e o dono da pasta agarrar a coronha dela, então o homem calvo começou e empurrar outras pessoas, tentando se afastar, enquanto exclamava:

— Meu Deus, uma arma!

— Senhor!

As vozes se multiplicavam em torno de Milton. Pessoas assustadas se acotovelando e levantando a voz.

— Porra, tem um cara armado!

— Sai!

— Senhor! — Steinberg finalmente reparou que este “senhor” era com ele. — Senhor, solte a arma!

Era uma mulher que tentava se achegar à Milton. Ela vinha empurrando as pessoas o mais cuidadosamente que podia, mas vinha inexoravelmente em direção dele, com ares de poucos amigos e com um uniforme preto de segurança do metrô. Steinberg estava começando a detestar seguranças!

Ele ergueu a arma. Não estava louco! Olhando em volta nervosamente, percebeu que por alguma razão que não poderia ser coincidência, aquele vagão continha mais três seguranças de farda escura que vinham também em sua direção,  cercando-o.

Um dos outros seguranças, homem, muito alto e largo como lutadores costumam ser, mantinha uma das mãos baixa, provavelmente já empunhando um cacetete ou coisa pior, enquanto já esticava  a outra mão, em garra, na direção de Steinberg, e dizia com voz firme:

— Calma. Calma, amigo.

Milton sabia que iria parar em outra sala sem janelas, e desta vez é pouco provável que escapasse do gringo de terno. Apontou a arma, hora para um, hora para outro dos seguranças! A mulher, a primeira a vir em sua direção, agitou uma das mãos para os colegas pararem, e começou  a falar para todos os passageiros:

— Todo mundo deita no chão. — Steinberg não pôde crer no que a segurança disse, e algumas pessoas, no meio daquele mar de gente prens, mas risos. ada, chegaram mesmo a rir. Risos nervosos, mas risos.

Apontando a arma para ela, Milton berrou, trêmulo:

— Você também! Todos vocês! Deitem no chão!

— Camarada… — Começou o segurança fortão, ao que Steinberg foi dizendo, com os olhos dardejando entre os seguranças e com a voz esganiçada de tão nervoso que ele estava:

— Escuta, porra. Eu só quero sair daqui. Essa arma não é minha. Deita na porra do chão, e eu não atiro em ninguém! E vocês primeiro! Os seguranças primeiro!

Todos os seguranças se abaixaram da melhor forma que conseguiram. O metrô havia parado em mais uma estação, e as portas se abriram.

— Agora os outros, os passageiros, por cima deles! Todo mundo se amontoando em cima dos seguranças! Vai! Vai! — Gritou Milton, sendo obedecido por todos, enquanto ele mesmo saltava do vagão e desatava a correr o mais rápido que conseguia.

Passou feito um meteoro pelas catracas, mantendo a pistola em punho mas oculta o melhor possível por sua pasta tiracolo. Subiu em disparada o passadiço curvo e ascendente da Estação Carioca, correu feito louco pela plataforma principal, em direção à saída do edifício Avenida Central, e escalou as escadas rolantes saltando de dois em dois degraus! Assim que saiu da estação do metrô, ele dobrou para esquerda, duas vezes, e, um pouco mais adiante, sem fôlego, parou e respirou fundo até se acalmar um pouco. Por alguma razão não havia ninguém perseguindo ele, devem ter visto que saiu da estação e deixaram o problema para que a polícia na rua se virasse com ele.

Sem perceber, ele havia dado uns poucos passos atrás, enquanto aspirava o ar ensolarado, vigiando se alguém o seguia, e, com uma olhadela para trás de si, para ver se não ia tropeçar em nada, se apoiou em um balcão de algum bar. Voltou a olhar em direção à saída do metrô, pronto para fugir se algum uniforme preto ou algum policial viesse em sua direção.

Foi então que um leve toque no braço o fez olhar para trás, agora mais ostensivamente, e ver a versão muito jovem e loira de dona Glória lhe passando uma fumegante xícara de café.

A Xícara, Novamente

Milton Steinberg se arrepiou todo, como se fosse a peça de porcelana uma víbora! Então ele olhou em torno, só percebendo naquele instante que estava na cafeteria, a mesma de ontem, de antes de ontem, de todos os dias! Olhou de novo para a xícara, pois logo a superfície do café vibraria, captando, com suas ondulações, a explosão distante, e tudo recomeçaria, de novo e de novo.

— O de sempre, senhor Milton. — Falou a atendente, sílaba a sílaba, do mesmo jeito, com o mesmo sorriso gentil.

Steinberg pegou a xícara como se ela fosse venenosa, e lembrou tarde demais que tinha uma arma nas mãos. Quando tentou aparar a xícara com a segunda mão, pois em sua mão trêmula o café ameaçava cair, Milton expôs a arma. A jovem atendente, consequentemente, viu a pistola na outra mão de Steinberg e foi recuando e repetindo sem parar:

— Ai meu Deus, ai meu Deus...

O homem armado arregalou os olhos, fitou a arma em sua mão como se a visse pela primeira vez, embora soubesse claramente como ela tinha ido parar lá, ele… Acreditava… Que havia tomado ela de um cara mal… Comprimiu e abriu os olhos, e com um movimento brusco da cabeça, relanceou em volta novamente, esticando a cara para fora da cafeteria, e foi então que ele viu homens uniformizados! Policiais, carcereiros! Encostados em uma viatura, não muito distantes dali, conversando soturnamente. Milton olhou de volta para a atendente, que, acuada, continuava rogando a Deus e a ele por misericórdia. Com um olhar de súplica, Milton apontou a pistola para a jovem, não para intimidá-la, mas, sem saber o que falar, sentindo-se imensamente envergonhado por assustar a moça. Mas ela entendeu como uma ameaça, se encolheu, se calando, chorando baixinho. Talvez, pensava Steinberg, suando e tremendo, seu cérebro chegando no limite diante de tudo aquilo, mesmo que ele atirasse nela, ela, no dia seguinte, voltaria, ou talvez a versão idosa dela. Milton sentia um nó na garganta, o peito oprimido, talvez tivesse que atirar, atirar em alguém… O sistema estava ali, em torno dele, novamente, novamente e novamente, cada parte agora eternamente corrupta do maldito sistema impelindo seu dedo no gatilho. Quantos Miltons o sistema matava por dia? Talvez fosse isso, tudo aquilo era para eliminá-lo, ele que parecia ser o único a saber que aquelas vinte e quatro horas eram sempre os mesmas. Talvez, de fato, a arma estivesse em suas mãos para Steinberg atirar em si mesmo, antes que fosse arrastado e trancado por toda a eternidade em uma cela (onde quer que ficasse, naquele dia eterno, jazeria para sempre).

— Nãããooo… — Murmurou ele, com o rosto contorcido de agonia. Suas lágrimas escorriam.

Na xícara, o café ondulou, rápida mas delicadamente, no mesmo instante em que Milton percebeu que seus carcereiros vinham correndo em sua direção, e em que ele foi levantando novamente a arma. Outros funcionários da cafeteria, vendo agora a pistola se erguendo, prestes a tirar a vida de alguém, começaram a fugir e gritar. A jovem do outro lado do balcão exibia as mãos espalmadas à frente de si mesma, que ela agitava no ar, como se estivesse negando algo, ou dando adeus à Milton. A boca da jovem, silenciosamente, repetia sem parar “não, não, não”…

E Milton Steinberg atirou. Duas vezes.

Mas não antes de se abaixar. A princípio ficou sem perceber claramente como a ideia lhe veio à cabeça, apenas pôs em prática, e no meio da ação entendeu o que estava fazendo, muito embora, em retrospecto, percebesse que foi, sim, premeditado. Estava lá, a ideia tão junta do agir, que ambas eram quase indistinguíveis.

Milton se abaixou rapidamente, antes que a pequena multidão de clientes e funcionários dispersasse. Os guardas, ele apostava, não tinham gravado sua fisionomia. Então, agachado, atirou para cima, torcendo para não ferir ninguém, e, ato contínuo, arremessou a arma numa reentrância por baixo do balcão. A princípio ele se estatelou no chão, como os outros faziam, por causa do terrível medo de balas perdidas que os moradores da dita cidade maravilhosa tinham, mas quando as pessoas perceberam que não haveria um terceiro tiro, e que começaram a se levantar e fugir, Milton fez o mesmo, mantendo as mãos se agitando no ar, vazias, como se ele fosse mais um transeunte em pânico.

Em um minuto estava andando a passos largos em direção à Cinelândia, e enquanto passava em frente ao que o povo da cidade chamava de uma decepção constante, e que as pessoas lá dentro chamavam de Câmara Municipal do Rio de Janeiro, ele passou por uma moça bonita que, por um segundo, ele achou ser sua vizinha Rheny. Mas não, não era ela, era uma moça muito parecida, mas ruiva, gringa, até um tanto sardenta, que estendeu um smartphone na direção dele, mostrou-lhe uma credencial que ele não conseguiu ler, e fez um gesto amplo, sorrindo, e dizendo algo sobre a copa do mundo, perguntando coisas, como se fosse uma entrevista.

Milton ficou, por um instante, fascinado com a semelhança entre esta mulher estrangeira e a sua Rheny. Que… Coincidência desconcertante…

Com a gringa insistindo, e sem saber como responder melhor, ele fez que não, agitando cabeça e mãos. Deveria estar havendo uma copa do mundo no Brasil, sim, mas ele não tinha tempo para mais pão e circo. A repórter ruiva perseverou na tentativa de que ele a respondesse, e ele, então, apontou para o próprio rosto, sinalizando lágrimas imaginárias, com as pontas dos dedos riscando o rosto a partir de seus olhos para baixo, depois apontou para o Palácio Pedro Ernesto, a Câmara Municipal, e disse:

— Corrupção. Roubalheira. Traição à pátria. Todo o governo, política desmoralizada e falida! Sem alegria. — E, lembrando seu velho professor que havia caído em desgraça, arriscou: — We… We will only be happy in a country of graduates, not in a country of…

Milton não conseguiu atinar de como se dizia “chuteiras” em inglês, então tentou por um momento imitar com os dedos alguém chutando alguma coisa, e, sentindo-se ridículo e amargurado, desvencilhou-se da moça, que ainda tagarelava.

Steinberg se livrou dela e continuou a caminhar ligeiro, para longe dali, apressando o passo ainda mais quando se deu conta de quantos policiais rondavam naquela praça. A vigilância ferrenha devia ser por conta da própria Câmara Municipal, para evitar que a indignação do povo que ela deveria respeitar lhe rendesse umas pedradas. Seus ocupantes, que a profanavam por dentro diuturnamente com sua politicagem corrupta e amadora, acusavam sarcasticamente de vandalismo qualquer revolta popular que a atingisse por fora. Era agoniante para Milton pensar que aqueles inchados vermes lamurientos e devoradores das riquezas da cidade teriam um reinado eterno, e de agora para sempre nada mais poderia ser feito para arrancá-los de lá.

Mais à frente Steinberg se enfiou no primeiro ônibus que conseguiu achar. E enquanto a condução rodava, ele pensava na ruína em que sua vida havia se transformado. Seria preso. Preso eternamente. Isso se não virasse mesmo uma cobaia… Mordeu o lábio inferior até quase se ferir. Nada daquilo tinha que ser real, talvez tudo fosse alucinação. Não tinha certeza mais de nada, só de que o dia se repetia, essa era sua única, vasta, absoluta e sombria certeza.

Sentado em um dos bancos do ônibus, a cabeça apoiada no vidro da janela, seu olhar, úmido, cuja expressão foi mudando, de triste e desesperançado para raivoso e amargurado, subitamente ganhou foco.

Não, não, pensou ele, enxugando as lágrimas, essa não era sua única certeza. Milton tinha também a certeza de saber onde tudo aquilo começou, e onde os infindáveis dias repetidos… Ou sua loucura… Poderiam ter um fim.

Saltou do ônibus e tomou outro, começando a ir em direção à Urca.

Continua na próxima semana, não perca...

Leia a Parte 4, FINAL de "Sob o Olhar da Eternidade"

Comente aqui embaixo, participe! Milton está louco?


Tags
10 years ago

Sob o Olhar da Eternidade (Parte 2)

Meus profundos agradecimentos àqueles que me deram a honra de me ler até aqui! Vamos em frente, neste texto um tanto crítico, outro tanto irônico, onde Milton, uma pessoa tão comum e tão desalentada pela realidade crua quanto muitos de nós, mergulha em um mundo de paranóia, ciência, e conspirações, tentando encontrar a si mesmo dentro de um prisão que ele crê eterna!

Leia a Parte 1 de "Sob o Olhar da Eternidade"

Qual a Probabilidade?

Milton comprou, à prestação, um fotômetro. O mais preciso que o Google conseguiu lhe indicar. Ajustou o aparelho, e começou, dia após dia… Ou melhor, nas repetições daquele dia, ele começou a tentar pegar o raio de luz que lhe cegava. Mas o Universo, como da hábito, não pretendia entregar seus segredos sem lutar, e as mesmas coincidências que o levavam a ser cegado pelo reflexo na cúpula de vidro agora o tiravam, diligentemente, do alvo.

— Você mora perto da minha casa, não? — Disse-lhe sua vizinha, subindo ao seu lado a escada rolante para a plataforma do trem, em Madureira, quando ele ia para o trabalho.

Era inacreditável, mas o fato de ele saber que o dia se repetia deveria estar causando flutuações mais intensas na realidade, pois lá estava, bem ao lado dele, a mulher que tanto o atraia, e que jamais havia percebido a existência de Milton, e agora não só estava a menos de um metro dele, mas também tomou a iniciativa de puxar assunto. Antes mesmo que ele pudesse responder, ela riu, sem jeito, e foi dizendo:

— Desculpe, não me entenda mal. Quero dizer… — Riu de novo, ainda mais sem graça. — Mas somos vizinhos, não somos?

— Você é muito lind… — Engolindo de volta o que tentou dizer em um ato falho, Milton engasgou ligeira mas visivelmente, tentando também consertar o dito: — Minha vizinha, sim, você é minha vizinha.

— Eu sabia! — Ela sorria. — Meu ônibus enguiçou, tive que pegar o trem. Não costumo fazer isso, mas como eu sei que você é um cara gentil, eu, meio louca, sei lá, perguntei antes de perceber que isso iria ficar estranho.

Milton comprou, à prestação, um fotômetro. O mais preciso que o Google conseguiu lhe indicar. Ajustou o aparelho, e começou, dia após dia… Ou melhor, nas repetições daquele dia, ele começou a tentar pegar o raio de luz que lhe cegava. Mas o Universo, como da hábito, não pretendia entregar seus segredos sem lutar, e as mesmas coincidências que o levavam a ser cegado pelo reflexo na cúpula de vidro agora o tiravam, diligentemente, do alvo.

— Você mora perto da minha casa, não? — Disse-lhe sua vizinha, subindo ao seu lado a escada rolante para a plataforma do trem, em Madureira, quando ele ia para o trabalho.

Era inacreditável, mas o fato de ele saber que o dia se repetia deveria estar causando flutuações mais intensas na realidade, pois lá estava, bem ao lado dele, a mulher que tanto o atraia, e que jamais havia percebido a existência de Milton, e agora não só estava a menos de um metro dele, mas também tomou a iniciativa de puxar assunto. Antes mesmo que ele pudesse responder, ela riu, sem jeito, e foi dizendo:

— Desculpe, não me entenda mal. Quero dizer… — Riu de novo, ainda mais sem graça. — Mas somos vizinhos, não somos?

— Você é muito lind… — Engolindo de volta o que tentou dizer em um ato falho, Milton engasgou ligeira mas visivelmente, tentando também consertar o dito: — Minha vizinha, sim, você é minha vizinha.

— Eu sabia! — Ela sorria. — Meu ônibus enguiçou, tive que pegar o trem. Não costumo fazer isso, mas como eu sei que você é um cara gentil, eu, meio louca, sei lá, perguntei antes de perceber que isso iria ficar estranho.

— Não ficou. Não, não ficou. Somos vizinhos, devemos nos conhecer. — A pasta tiracolo dele escorregou de seu ombro, e Milton a ajeitou. — Tudo anda tão louco, que é bom saber que pessoas conhecidas estão por perto… Ei, desculpe perguntar, mas como sabe que eu sou gentil?

— As pessoas falam. — Ela estava estonteante, arrumada para o trabalho, elegantemente e sutilmente sensual. Devia ser advogada, ou algo assim, ele pensava.

— Pessoas?

E dali em diante ficava fácil deduzir o por que fez ele não ter conseguido medir o reflexo luminoso, de novo. Na verdade ele nem lembrou do flash até chegar ao Centro do Rio. Sua vizinha, que se chamava Rheny Alencar Roussel, explicou a ele sobre como as senhoras da vizinhança, que gostavam dela pois todos os sábados Rheny jogava cartas com elas, haviam colocado Milton na lista de boas e más pessoas das redondezas, enquanto fofocavam inofensivamente entre si. Ele era uma das pessoas boas. Uma certa senhora do grupo, que Steinberg sempre achou que não gostava muito dele, o viu respondendo aos acenos de crianças dentro um ônibus que agitavam as mãozinhas nas janelas (quando acenam para você, é educado, ele achava, acenar de volta, especialmente quando se percebe a alegria inocente dos pequenos) em uma rua próxima, deixando-as risonhas e felizes.

Milton jamais imaginaria que ele pudesse estar em uma lista dessas, no lado das boas pessoas, e se sentiu feliz com aquilo. Tão feliz que, ao se despedir de Roussel, sem, no entanto, reunir coragem para pedir a ela um telefone ou algo assim, subitamente se deu conta de que havia esquecido de medir o reflexo luminoso!

Na tentativa seguinte, exatamente quando Milton levantava o fotômetro, um sujeito lhe disse que estava perdido, que precisava ir ao Centro mas que não sabia se estava indo na direção certa, pois era de fora do Rio, e estava ali para buscar uma irmã, que ele não via há quase vinte anos, e etc e tal, e pronto, lá se foi sua chance naquela manhã de medir o foco luminoso.

No dia posterior Steinberg estava tentando, dentro do vagão em movimento, acionar o aparelho de medição sem tirá-lo da bolsa, pois nos dias anteriores achou que os seguranças da linha férrea o estavam olhando torto, talvez estranhando que ele andasse apontando aquele aparelho para lá e para cá, enquanto o calibrava. Milton, portanto, passou a tirar o fotômetro só quando estava chegando perto do ponto onde a luz o atingia. Mas enquanto tentava acionar o aparelho que, por alguma razão misteriosa não queria ligar, ele foi abordado pelo pedinte ranzinza, que o cutucou com uma caneca, e disse:

— Qualquer dez centavos serve.

— Hein? Ah, sim. Eu não tenho.

— Você nunca tem.

Milton ficou olhando para o pedinte, um senhor de certa idade, sem saber o que dizer além de um xingamento, que, em verdade, ele preferia não dizer. Steinberg não era muito velho, mas era do tempo em que não se xingava tão levianamente quanto hoje em dia. Então, subitamente, o homem preso em um único dia se viu perguntando ao mais velho:

— Para quê o senhor quer dinheiro?

— Estudar.

— C-como? O que você disse?

— Isso que você ouviu, rapaz. Na verdade eu sempre explico, mas você é um daqueles muitos que não escutam, que não querem escutar, ou estendem a mão e deixam cair seus trocados aqui na caneca, — a peça de plástico se agitou e tilintou na mão dele — ou fingem que não me viram. Uns poucos me dizem um mais cortês não. Você sempre me diz não, mas pelo menos fala comigo.

— Me… Desculpe.

O velho deu de ombros e prosseguiu, animado em conversar:

— Lembra do cara que morava na rua e que estudou e passou para o concurso do Banco do Brasil?

— Ouvi falar…

— Pois é. Eu já fui professor, agora moro na rua, junto com outras pessoas em um buraco na estação de Madureira. Mas acho que posso sair dessa, seguindo o exemplo daquele homem, estudando.

— Professor? — Milton ficou com a impressão que conhecia o velho pedinte, e essa impressão deve ter transparecido em seu rosto, pois o outro foi dizendo:

— Sim, eu fui seu professor no ginásio. Eu nunca esqueço um rosto, eu acho que você era o… Rosemberg?

— Steinberg. Português? O senhor ensinava português?

— Estudos sociais.

— Como? Quero dizer, como isso aconteceu, professor?

— A profissão já não tem muito prestígio no país no futuro, sabe como é. O país das desgastadas chuteiras tem tudo para ser o país dos diplomas, mas não é. — Seu sorriso não desapareceu, mas seus olhos expressavam mágoa, quando completou: — E, cá entre nós, convenhamos, droga só pode chegar tão fácil na mão da gente com a conivência, ou coisa pior, dos governantes, certo?

Milton, agora, foi quem deu de ombros. Aquilo era uma coisa que todo mundo sabia, política e marginalidade no Brasil eram quase sempre a mesma coisa. Steinberg fez uma cara triste. Achava que lembrava, vagamente, do professor, e ele era um cara que ensinava legal, sempre risonho, parecia gostar muito de lecionar.

Steinberg se atrasou para o trabalho naquele dia. Ele e seu antigo mestre comeram juntos na mesma cafeteria que Milton sempre frequentava, e o professor viu a xícara de café vibrar e o líquido preto dentro dela se preencher de ondas concêntricas!

— O senhor viu isso? Viu só?

Ele tentou explicar ao idoso professor que aquilo acontecia diariamente, e não teve certeza se o cara entendeu que algo inusitado estava acontecendo. Depois disso Milton passou em uma livraria com seu antigo mestre, que sonhava em voltar a estudar, e quase estourou o que restava do limite do seu cartão de crédito, comprando apostilas e livros para o sujeito, cujo rosto se iluminou, ele tinha uma chance! Em uma LAN house, Steinberg fez um perfil no Facebook para o sem teto, anotou os dados em um dos livros que haviam comprado, e fez o cara prometer que, quando superasse aquela época difícil, após passar no concurso, iria fazer contato com ele. Milton sabia que isso não aconteceria, pois nunca mais haveria amanhã, mas, caramba, justamente por isso, dane-se! Deu algum dinheiro para o sujeito, e se despediu dele. O velho professor ficou tão feliz que Milton só lembrou do flash luminoso no dia seguinte.

Mais um dia e Steinberg estava, de novo, no vagão, e conseguiu, com algum esforço, chegar à exata posição onde, ele já estava cansado de saber, o raio de luz o atingia. Mas assim que chegou lá, tossiu. Um sujeito de terno e gravata, com aparência de executivo, parecia ter passado a noite anterior dentro de um grande tonel cheio de perfume! Se ao invés de cheiro o camarada estivesse exalando fogo, o trem inteiro teria explodido e estaria ardendo em chamas! Era quase insuportável, mas, desta vez, Milton estava decidido a não deixar nada, de jeito nenhum, impedir que ele fizesse a medição da luz. Fincou pé em sua posição e armou o fotômetro assim que o trem parou na estação logo antes de onde ele sabia que o raio luminoso costumava aparecer. Em cerca de dois minutos o flash espocaria da cúpula de vidro do templo religioso, mas não atingiria seus olhos, e sim o sensor do fotômetro.

Houve um certo tumulto, na estação em que o trem havia parado, um burburinho, algumas pessoas correndo, e Steinberg ouviu, em algum lugar, a palavra “assalto”, mas não houve uma explosão de gente em fuga, o que pareceu indicar que tudo havia passado. As portas da composição se fecharam, ele apertou o sensor luminoso na mão direita, enquanto a esquerda segurava firmemente a barra de metal acima dele, que servia para que as pessoas entulhadas ali dentro se mantivessem de pé, para caberem mais dos ditos dignos trabalhadores por metro cúbico.

Steinberg olhou furtivamente em volta de si, e não viu nenhuma pessoa conhecida, ergueu o aparelho, pondo ele em frente ao rosto e… Seu telefone tocou. Ele ignorou. Alguém dentro do vagão gritou alguma coisa. Ele ignorou.

A qualquer instante a luz iria espocar!

Mas antes disso, alguém esbarrou nele, se levantando de um dos assentos à frente, abarrotados de pessoas, como quem quer fugir, sair de perto dele, e Milton percebeu, de canto de olho e depois olhando diretamente, que dois seguranças, com bonés e coletes de cores berrantes, vinham em sua direção, olhando-o com raiva!

— Larga esse troço! — Um deles gritou, enquanto o outro levantava um cassetete.

Milton, que sabia o quão bem treinados eram esses tipos de profissionais no seu país, desatou a correr, claro. Ou melhor, tentou correr no engavetamento de gente que era o vagão balouçante de trem naquele momento da manhã.

Um agressivo estalo elétrico o fez perceber que alguém, certamente um dos seguranças, empunhara uma arma de choque, e instintivamente Steinberg começou a empurrar as pessoas, como o afogado que empurra a água tentando respirar! Em algum lugar seu celular tocava sem parar, ele nem se dava conta, enquanto lutava para escapar. Ele chegou ao fim do vagão e atravessou o acesso que havia entre as composições acotovelando quem estivesse pela frente. Milton chegou a levar um soco desengonçado de alguém, mas estava com a adrenalina tão alta, que mal sentiu o fraco golpe, enquanto ouvia os gritos cada vez mais selvagens dos dois seguranças, que praguejavam e xingavam Steinberg, as pessoas que atrapalhavam a perseguição, maldizendo tudo, até o mundo que era uma merda! Corriam aos tropeções, os três, enquanto as pessoas faziam o possível para sair do caminho, quando Milton bateu contra a parede no fim daquela composição, não havia acesso à próxima composição, não havia mais para onde ir. A não ser para fora! Então, empurrando as pessoas que, apavoradas, se contorciam para escapar, ele se esgueirou até a lateral onde estava a saída, agora fechada, segurou a borracha carcomida entre as duas abas da porta do vagão, enfiando ali os dedos e agarrando essas abas com os cotovelos apontados para os lados, e fez força para abrí-las. Forçou uma, duas vezes. Os seguranças cada vez mais próximos. Novamente Steinberg forçou as portas, que cederam, relutantemente no começo, mas se escancarando devido a má conservação no final! A ventania entrava, visto o trem estar em plena velocidade, e Milton parou no limiar da porta aberta, olhando o chão de brita correr abaixo. Virou o rosto, viu que o trem se aproximava de mais uma estação, logo iria desacelerar, se ao menos conseguisse atrasar os seguranças, pensou. E imediatamente se deu conta dos camelôs que pululavam entre os passageiros, sempre tentando vender seus produtos no meio daquele sufoco, pagando propina sempre para os seguranças da linha férrea, mas não raro perdendo tudo que tinham para os caras, quando estes resolviam fingir trabalho para seus superiores. Milton gritou:

— Meganha! Segura os meganhas! — Usando gíria que, em suas infindáveis viagens de trem, ouviu os camelôs usando.

Alguém, para sorte de Steinberg, perdeu o senso de perigo e resolveu agir, pondo uma perna bem no caminho do segurança que já estava quase alcançando Milton, e o cara desabou no chão, seguido do colega. A arma de choque deve ter disparado, pois ouviram-se gritos e estalos elétricos. No tumulto que se seguiu, o trem já estava quase parando na estação, e Steinberg desceu correndo, o fotômetro ainda na mão, esquecido. Girando no próprio eixo, ele percebeu que estava na estação ao lado da Quinta da Boa Vista! Poderia correr para o metrô, e desaparecer por lá. Subiu as escadarias correndo, e talvez tenha sido esse o seu erro ingênuo, pois assim que os seguranças que o perseguiram dentro do trem começaram a berrar (deveria haver um rádio quebrado em algum lugar, um monte deles para os seguranças, os quais a corrupção endêmica brasileira não deixava serem consertados nunca) outros seguranças vieram correndo de cima, e se atiraram sobre Milton, o único cara que parecia fugir, pois estava em disparada. Steinberg foi derrubado, rolando escada abaixo e batendo a cabeça.

Escuridão.

Pobre Homem Louco

Milton despertou numa espécia de enfermaria sem janelas. A porta estava aberta, ele pôde ver assim que se levantou da maca em que havia estado. E assim que ele fez isso, por esta porta entraram os dois seguranças que o haviam perseguido, seguidos de ninguém menos que Rubens, que foi dizendo:

— Foi bom ele acordar, significa que ninguém aqui vai se encrencar.

— Ele é que tá encrencado, chefia. — Disse um dos seguranças, cujo crachá Milton se esforçava mas ainda não conseguia ler.

— Ah, colega, quê isso?

E o Doutor Castilho se aproximou do segurança, despretencioso mas sério, e continuou, em um quase sussurro:

— Olha para o meu amigo. Ele está tendo uma crise, um atque de ansiedade. — e falando em um tom ainda mais baixo: — O pobre homem está louco, passando por muita coisa, não feriu ninguém além dele mesmo. Vamos esquecer isso tudo.

Milton, cuja cabeça latejava, conseguiu ouvir o murmúrio, e fez cara de quem não gostou, mas um instante depois sua expressão mudou. Estaria mesmo louco? Seria tudo aquilo imaginação dele? A certeza que tinha dentro de si, de que o mesmo dia se repetira eternamente, era pétrea, mas sua vida estava começando a ficar tão louca com aquilo, que a certeza de que ele próprio era uma pessoa sã já não era tão forte. Lembrou da Navalha de Occam, de Alice, e se calou, apenas observando enquanto Rubens conversava com os outros homens. O segurança com quem Lewroy iniciou a conversa, em certo momento, fez que sim com a cabeça, e disse:

— Está bem, doutor. Todo mundo tem seu dia de cão. É tanta sacanagem, violência e roubo que tá todo mundo com os nervos estourando.

— É mesmo. Tudo anda tão desanimador. — Concordou Rubens.

— É isso mesmo. A gente parece que tem acesso a mais informação, tipo pela Internet, mas fica sabendo que político tudo é bandido, que copa do mundo é tudo armação, que a vida podia ser bem melhor, mas se depender de quem manda, nunca será, que acaba ficando meio louco.

O outro segurança, mais calado, apenas balançou a cabeça, concordando. O primeiro segurança, mais falante, ficou um momento em silêncio, olhando para Milton, que ainda massageava a própria nuca, e então o sujeito disse:

— A gente também anda cansado. Confundimos ele com ladrão… Faz o seguinte, espera aqui que eu vou avisar a chefia e logo depois liberamos vocês, tá bem?

Lewroy abriu os braços e meneou a cabeça, dizendo simplesmente:

— Obrigado, caras.

Ambos os seguranças se foram.

Milton, constrangido, inseguro quanto a sua própria sanidade, já ia agradecer à Rubens, e perguntar como ele o encontrou, quando Lewroy o agarrou pelos ombros, o fitou olho no olho, a menos de um palmo de distância do seu rosto, e disse, num sussurro, quase selvagem:

— Milton! Escuta, cara! Alice, ela sabe de alguma coisa sobre um projeto que eu e ela participamos, e que eu não sei. Tem haver com o que você apareceu lá no meu trabalho.

— Q-que projeto?

— Uma iniciativa internacional, um experimento prático, que foi levado a cabo há alguns dias. Não interessa, só me escuta: fica longe, muito longe da Urca e da Alice, está bem? Acho que é perigoso, cara, eu tô dando um tempo, vou sair do Rio.

— Como você me achou?

— O Clinton é um amigo meu, Federal. Seu celular. Agora levanta, vem, nem vamos esperar os seguranças, não podem nos manter em cárcere, é ilegal. Vamos, eu te ajudo. Ah, toma isso, estava contigo e eles me devolveram, eu expliquei que é inofensivo, apenas um fotômetro.

Se pondo de pé, e pegando o aparelho das mãos do amigo, Steinberg fez um sinal de que podia andar sozinho, quando o outro tentou apoiá-lo. Apanhou também sua pasta tiracolo, que estava nos pés da maca, a pôs no ombro, e seguiu Rubens, que saiu na frente, mas assim que o físico pôs um pé fora da claustrofóbica enfermaria, este levou a descarga de uma arma de choque, Milton viu o clarão e ouviu o som inconfundível!

Enquanto seu amigo físico desabava no chão, os olhos de Steinberg se arregalavam! Estava encurralado!

Continua na próxima semana, não perca...

Leia a Parte 3 de "Sob o Olhar da Eternidade"

Comente, participe! Milton está louco?


Tags
10 years ago

Sob o Olhar da Eternidade (Parte 1)

Caríssimos leitores, segue a primeira parte de um novo texto. Como faço habitualmente com as histórias aqui publicadas, será uma parte por semana, até o final (este não é um texto de degustação, será publicado na íntegra). Neste conto, um tanto crítico, outro tanto irônico, um cara comum mergulha em um mundo de paranóia, ciência, e conspirações, tentando encontrar a si mesmo dentro de um prisão que ele crê eterna!

Leia a Parte 2 de "Sob o Olhar da Eternidade"

A Xícara

Novamente, novamente e novamente. Todo dia era — quase, havia os quanta — tudo sempre igual. Quando a moça loira (antes havia sido morena, ou um rapaz, ou ainda uma senhora adorável cor de avelã, mas a entrega era sempre a mesma) lhe entregou, escorregando por sobre o balcão, a xícara de porcelana cheia de fumegante e cheiroso café, puro, preto, Milton Steinberg se arrepiou todo, como se fosse a peça de porcelana uma víbora! Então ele olhou em torno, só percebendo naquele instante que estava na cafeteria, a mesma de ontem, de antes de ontem, de todos os dias! Olhou de novo para a xícara, pois logo a superfície do café vibraria, captando, com suas ondulações, a explosão distante, e tudo recomeçaria, de novo e de novo.

— O de sempre, senhor Milton. — Falou a atendente, com seu sorriso claro e sardento, como se o conhecesse há anos, como se fosse ela mesma que lhe entregasse aquela mesma xícara (seria a mesma? Átomo a átomo?) toda manhã.

Sua mão trêmula pegou a xícara por cima, como quem pega um pote de alguma coisa perigosa. Foi neste instante que a jovem atendente viu a pistola na outra mão de Steinberg e foi recuando, dizendo:

— Ai meu Deus, ai meu Deus...

O homem armado arregalou os olhos, fitou a arma em sua outra mão, como se a visse pela primeira vez, embora soubesse claramente como ela tinha ido parar lá. Depois, com um movimento brusco da cabeça, relanceou em volta novamente, esticando a cara para fora da cafeteria, e foi então que ele viu homens uniformizados! Policiais, carcereiros! Encostados em uma viatura, não muito distantes dali, conversando soturnamente. Milton olhou de volta para a atendente, que, acuada, continuava rogando a Deus e a ele por misericórdia. Com um olhar de súplica, Milton apontou a pistola para a jovem, que se encolheu, mas se calou, chorando baixinho. Talvez, pensava o homem, suando e tremendo, mesmo que atirasse nela, ela, no dia seguinte, voltaria, ou talvez a versão idosa dela. Steinberg sentia um nó na garganta, o peito oprimido, talvez tivesse que atirar, o sistema estava ali, em torno dele, novamente, novamente e novamente, cada parte agora eternamente corrupta do sistema impelindo seu dedo no gatilho, talvez para atirar em si mesmo, antes que fosse arrastado e trancado por toda a eternidade em uma cela (onde quer que ficasse, naquele dia eterno, jazeria para sempre). Sem saber o que fazer, ele baixou um pouco o punho armado, percebendo que aquilo era inútil, terrivelmente consciente de que o dia, novamente, novamente e novamente, o levou até aquela xícara, ele chorou, agoniado.

Frente de Onda e Déjà Vu

A vida cotidiana é o veneno que se encarrega de envelhecer e enfim matar as pessoas. Ao menos Milton Steinberg pensava assim, quando, pela terceira vez naquela semana, despertou de mau humor, comeu alguma coisa, se banhou e vestiu, pegou a pasta tiracolo, pendurou no ombro, e saiu para trabalhar, às seis, como de costume. Brasileiro invulgar, não tinha a faculdade comum aos seus compatriotas de rirem no caos, e certamente devia ser julgado extremamente mal por isso, cercado de gente que ria enquanto era tratada como escrava por seus servidores públicos, administradores e pela comunidade economicamente dominante, de um modo geral. Não que Milton não sorrisse. Sorria quando via um azul perfeito no céu, ou algum raro ato de bravura ou bondade na rua. Mas em geral apenas enxergava pessoas fingindo que o que elas estavam fazendo tinha alguma relevância. Não tinha. Filósofo de quinta categoria, Milton sabia que sob o ponto de vista da eternidade, nada era perene, tudo se dissolveria no tempo e no espaço, ninguém seria lembrado por absolutamente nada do que fez, as pessoas mais famosas da mídia ou da história um dia, mesmo que levasse cem mil anos, seriam completamente esquecidas, e nada do que foi feito teria valor em si, a não ser como uma infindável corrente de repetição, nascer, viver, morrer para outros nascerem, viverem e morrerem depois.

Certamente essa linha de raciocínio foi uma das precondições causadoras do que estava por vir. Ela o assaltava vez em quando, especialmente quando seguia para o trabalho na lata de conserva superlotada que as pessoas chamavam de trem, indo de Madureira para o Centro do Rio de Janeiro, e ainda mais especialmente quando seus olhos captavam algo estranhamente fugidio, um dos diversos pequenos eventos repetitivos que preenchem as vidas das pessoas, como por exemplo um lampejo de luz na cúpula de vidro de um templo religioso qualquer, que teimava em fulgir justo nos seus olhos, quando passava por ali de trem.

Naquele dia o evento se repetiu justamente quanto Steinberg matutava sobre sua filosofia barata e desanimadora (ao menos ele pensava assim), sobre o fato incontestável de que um amontoado de gente era enlatada diariamente em um ir e vir de horas, somente para que seus filhos e netos fizessem a mesma coisa, eternamente e indignamente.

Quando o raio de luz o cegou, Milton piscou e imediatamente resmungou e praguejou entre os dentes. Sempre que aquele reflexo, que não dava a mínima para existência do sujeito, lhe cegava, ele pensava que no dia seguinte estaria em outro vagão, e que não se esqueceria de pegar sua condução voltado para o lado contrário de onde vinha o reflexo. E algumas vezes cumpria mesmo o intento, mas em algum momento esquecia, ou fatos como pessoas empesteadas de perfumes, ou com rádios altos, ou mesmo um pedinte que teimava em lhe pedir o dinheiro que não tinha e o encarar de forma rancorosa quando recebia um “não”, todos esses pequenos eventos, comuns, o conduziam, como o dançarino conduz a dançarina, reposicionando-o e girando-o, um pouquinho aqui, outro tanto ali, e zap! O reflexo o pegava de novo, bem nos olhos, o relâmpago cegante! Não acontecendo todos os dias, claro, mas acontecendo muitas vezes ao ano. Como era possível? Haveria algum destino? Não, não conseguia conceber um mundo-prisão onde você só existe nele para compor um quadro já pintado, sem chance de ser outra coisa além daquilo, tão pouco, que era. A bem da verdade Steinberg talvez tivesse mais medo daquela possibilidade do que argumentos razoáveis contra a veracidade dela.

Zap! Imprecações, verborragia murmurada, tinha sido pego novamente, novamente e novamente por aquele flash de luz refletida na cúpula de vidro do templo. E por causa do pedinte, de novo, que por sua vez só entrou no mesmo vagão que ele por conta de ele ter ajudado outra pessoa perdida a achar seu caminho ao parar para dar uma informação e perder seu ônibus das seis  e quinze que o levaria até a estação de trem, e, provavelmente ele só teve que parar para dar informação por ter feito um caminho mais longo para se desviar daquela mulher que morava na rua ao lado e que se achava a garota mais bonita do mundo e para o ego da qual ele não queria dar alimento a custa dela perceber que ele a achava mesmo muito bonita, enfim… E foi aqui que o cerne da ideia surgiu… Essas coisas se repetiam, não todos os dias, ele sabia, lia sobre essas coisas, sabia da incerteza quântica e etc, que alguns diziam nada ter haver com o mundo macroscópico em que vivemos, e se restringir ao nível atômico, mas ele duvidava muito disso, as incertezas é que mantinham os dias ligeiramente diferentes uns dos outros, pensava ele. Qualquer dia iria perguntar sobre esta sua teoria ao seu amigo físico, Rubens Castilho Lewroy, o velho Binho Cranião, Lewroy Cabeção, gênio do colégio e que trabalhava agora na Urca, naquele laboratório do governo. Iria sim, perguntar a ele. Um dia.

Desceu do trem, na Central do Brasil, aquele monumento ao fato de que se trabalho dignificasse, aquele lugar naturalmente transpiraria dignidade, e não ruína política e social. Milton evitou uns menores provavelmente embebidos em crack e mal intencionados, driblou um camelô vociferante vendendo guarda-chuvas abertamente e celulares roubados mais discretamente, esquivou-se de motoristas que achavam que, nos sinais de trânsito, os pedestres é que deveriam dar passagem aos carros, e, enfim, descobriu que o ônibus que costumava pegar para o último trecho da viagem já havia partido antes do horário, então ele voltou à Central e, soterrando-se em outro transporte público, caiu no metrô que o esmagou novamente e o regurgitou na estação Carioca, de onde Milton emergiu como quem vê pela primeira vez, depois de décadas de trevas, os raios do Sol. Desanimado, pediu um café na cafeteria da esquina. Dona Glória (estava escrito no crachá dela), a atendente, com sua pele castanha e seu sorriso branco, lhe entregou o café preto e fumegante. O homem sorriu gentilmente para a graciosa senhora, em agradecimento, ajeitou a pasta tiracolo no ombro para poder pegar a xícara, olhou para a xícara, e parou de sorrir.

Sobre a superfície de ébano líquido do café, ondas concêntricas se formaram, mas não no centro da xícara, e sim espalhando-se, da área voltada para Steinberg em direção ao lado oposto, ligeiramente mais distante do peito do homem.

Nada demais, a vibração de um ônibus ou dos trens subterrâneos, se não fosse o fato de que duas outras coisas desconcertantes aconteceram neste mesmo instante: primeiro Milton sentiu sua carne vibrar a partir de suas costas até seu peito, como se o que empurrou a superfície do café tivesse passado por dentro dele próprio; e segundo, Steinberg teve a clara certeza de que tudo aquilo que estava vivendo já havia acontecido antes. Não a sensação vaga de um déjà vu, mas a certeza factual de que tudo estava se repetindo, não a mera e massacrante rotina cotidiana, mas de fato, de verdade, ele estava preso, horrivelmente preso, em um mesmo dia que, com algumas variações, era eternamente o mesmo. Não sabia como sabia daquilo, apenas sabia, como sabia seu próprio nome ou o que era uma xícara.

À volta de Steinberg as pessoas pareciam vagamente incomodadas. Sim, muitas pareciam desconcertadas, ele achava, mas rapidamente voltaram aos seus afazeres. Elas haviam tido um déjà vu, mas Milton havia sido o único, por alguma razão incompreensível para ele, que sabia o fato de aquele ser o único dia que existiria para sempre.

Olhou para trás de si. Ponderou. Sacou o celular para avisar que não iria trabalhar, e logo depois era engolido pelo metrô novamente. Era hora de conversar com o Rubens.

A Navalha de Occam

Milton teve que apelar para o Google Maps, mas finalmente estava de frente para o Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas, na Urca.

— Fala Cabeça. — Disse Milton ao celular, da portaria do prédio até modesto, perto de outras instalações dedicadas à ciência mundo afora. Se comparado aos centros de estudos em física de países desenvolvidos, o tamanho do brasileiro era inversamente proporcional à corrupção que assolava o país verde e amarelo de Steinberg. Ainda assim era um prédio, com direito a portaria e guarda dizendo que você só entra se um dos doutores liberar.

— Milton? Cara, que maneiro! Milton Iceberg, o jogador de Tetris mais frio e calculista do Universo! — Respondeu pelo celular o Mestre em Física Aplicada Rubens Castilho Lewroy. — Cara, você e sua intuição para padrões me fizeram seguir carreira científica, sabia? Como está, cara? Deve fazer um ano que não te vejo, e você raramente aparece no Face.

— Estou aqui em frente ao prédio onde você trabalha, Rubens, e preciso muito falar contigo, agora.

— Que voz é essa, rapaz? Ok, ok, vai pra portaria…

— Tô nela, Cabeça.

— ...Então espera que vou ligar te liberando, e o guarda vai te indicar como chegar na minha sala.

— Fala sério, Iceberg! Só você mesmo para tentar me pregar uma peça no meu trabalho! Um dia eterno que varia por causa dos quanta? Isso é, no mínimo, contraditório!

O Doutor Lewroy havia convidado o amigo para um café. Estavam ambos sentados na sala do físico, um em cada ponta de um sofá que ficava em um canto do cômodo, abaixo de uma janela. Lewroy a havia posto lá para poder ler com a luz do dia. Gostava de ler artigos, teses, textos científicos e quadrinhos naquele velho e confortável sofá de quatro lugares. Automaticamente Castilho foi se sentar onde estava acostumado a ficar, no canto longe da porta de entrada do escritório, e seu amigo ansioso ficou na ponta logo ao lado desta porta.

— Rubens. É sério. — Retrucou Steinberg. — Alguma coisa aconteceu… Acontece, toda a manhã, que faz o dia ser o mesmo!

O físico ficou olhando o amigo por um momento, muito sério. Então riu e disse:

— Prova.

— Eu… Não sei como provar.

— Então, cara, isso é coisa da tua cabeça. Fim.

— Não! — Disse Milton erguendo a mão espalmada. — Eu sei, como sei que esta aqui é minha mão. Eu vim falar contigo justamente para você, que sempre foi o mais genial, me dizer o que é isso.

— Alguma falha cognitiva, Iceberg. — e Rubens escancarou seu sorriso mais carioca — O teu cérebro encasquetou em fixar um circuito neuronal que fica dizendo o tempo todo para você que está no mesmo dia. Algo haver com a parte do teu cérebro que lida com o tempo.

— Faz sentido, mas… — E sem se dar conta, automaticamente, Milton ergueu o braço e abriu a porta ao lado. Uma mulher, jovem, estava parada logo em frente à porta, a mão se recolhendo lentamente, era perceptível que ela ia bater quando a porta se abriu, o que a surpreendeu um pouco.

— Oi, Alice. O pendrive com os cálculos está ali, na mesa. — o físico foi falando para a moça. — Milton, esta é a Doutora Alice Moretti.

— Olá, Doutora. Você vem aqui diariamente pegar cálculos ou coisa assim com esse cara, não é?

A moça, séria, olhou de um homem para o outro, e enfim respondeu:

— Sim. Quem é o senhor?

— Desculpe. Sou Milton Steinberg, amigo de infância do Doutor Rubens. — E, voltando-se para o outro homem, Milton foi dizendo: — Eu sabia. Eu sabia que ela estava na porta, pois eu sei que o dia está se repetindo!

— O quê?

— Ele acha que o Universo está preso num loop temporal, Doutora. Olha, Ice… Steinberg, meu amigo, Alice vem sim pegar diariamente resultados de cálculos comigo, e certamente, cara, você a ouviu, mesmo que no limitar da sua audição, chegando na porta que estava bem ao seu lado...

— Você está afirmando — Disse a moça — Que este cara, do nada, veio aqui falar contigo sobre um looping de tempo, desses de filmes da sessão da tarde na TV?

— Eu vim tentar entender o por que de eu saber, com a mais absoluta certeza, que estou vivendo… Nós todos estamos vivendo um mesmo e único dia, num ciclo sem fim.

— Às vezes as coisas se repetem, mas… — Principiou Alice, no entanto seu colega Rubens foi emendando:

— Ele argumenta que as diferenças são por conta do Princípio da Incerteza. — E, mediante um olhar atônito da mulher, o Doutor Castilho deu de ombros.

— E o senhor é formado em quê? — Quis saber a mulher.

— Tetris. — Brincou Milton, com um sorriso desanimado, e já imaginando que foi perda de tempo ir até ali. Alice, por sua vez, finalmente sorriu, e disse:

— Duvido que jogue melhor que eu. Mas tudo bem, se o senhor tem algum dado que prove sua percepção, vamos achá-lo. Se não, vamos encontrar o argumento lógico que te faça compreender que o problema está em seu cérebro, e não no Universo.

E, com certa graça, rara naqueles dias, a moça se sentou no canto do sofá em que Rubens costumava se sentar. Ambos os homens, claro, haviam se levantado quando ela entrou. E ambos os homens se sentaram logo que ela se sentou, Milton no meio e Rubens na outra ponta.

— Alice?

— Doutor Rubens. — Disse Alice, calmamente, em resposta ao colega. — Seu amigo está, obviamente, angustiado com o que está sentindo. Não temos nenhum compromisso urgente agora. A bem da verdade nem os nossos governantes e empregadores entendem a ciência como algo urgente neste país, então porque não ajudar seu amigo? Muitas vezes quando estamos assim, um simples papo já nos tira do fundo do poço.

— Obrigado, Alice. Posso chamar você de Alice? — Quis saber Steinberg, em um tom educado.

— Sem problemas, Milton. Agora vamos lá, se você não tem formação física, preciso te perguntar se entende os conceitos básicos envolvidos. Você entende?

— Gosto de ler um pouco de tudo, com certeza eu não sei tudo que deveria saber. Mas sei o que sei. Só vamos ter este dia, para sempre. — Respondeu Steinberg, quase soltando um suspiro desalentado no final.

— Obrigada por responder, Milton. Eu fiquei preocupada, sinceramente, que você achasse que era algum tipo de arrogância minha perguntar sobre o que sabe e o que deixa de saber, mas é preciso. Você está familiarizado e compreende o conceito de espaço-tempo?

— Sim. Einstein comprovou matematicamente que é mais produtivo pensar que espaço e tempo são a mesma coisa, e até hoje todos os experimentos indicam que ele deve ter razão. É isso?

— Em linhas gerais, sim. Então você diz que o espaço-tempo está curvo?

— Não tenho como afirmar, mas creio que sim, se espaço e tempo são a mesma coisa, então se o tempo se repete, o espaço tem que se curvar também, em círculo, acho.

— Mas, veja, Milton, você afirma que estamos em looping, ou, nas suas palavras, em um dia que se repete eternamente, daí o espaço-tempo tem que ter agora a forma de um círculo, sim, ou em outros termos, a forma de um toro. Feito um pneu, entende? Me acompanha? Ótimo. Então, com esse espaço-tempo em forma de toro, partimos de um ponto qualquer na superfície desse anel volumoso, e chegamos sempre a este mesmo ponto, podemos rodar pela superfície do anel mil vezes, mas sempre paramos no mesmo instante…

— A xícara! Eu sei, toda a manhã a Glória me passa o café preto, por cima do balcão, e é ali que eu atinjo o ponto em que comecei a rodar pelo anel de espaço-tempo.

Alice e Rubens se entreolham, ele com expressão de quem vê algo cair e se quebrar, ela com o rosto impassível. Milton, então, em um resumo breve, mas sem deixar nada importante de fora (exceção feita à tal garota, sua vizinha, que se achava linda, e que de fato era. Desta, Steinberg não falou nada) sobre seu dia eterno, que, hoje ele notou novamente, começava quando ele era transpassado por uma misteriosa força que gerava ondas no seu café preto.

— Interessante, Milton. — Alice falou, sorrindo mais uma vez. — Mas voltando ao ponto, se estamos presos em um anel de espaço-tempo, dia após dia fazendo as mesmas coisas, com pequenas variações por conta de flutuações quânticas, então no que isso difere de um dia normal em nossa atual cultura baseada em capital e trabalho?

Steinberg ficou olhando desconsoladamente para ela, sem saber, assim de súbito, o que responder. A cientista, então, prosseguiu:

— Pode-se dizer que nós sejamos privilegiados, eu e o Doutor Rubens aqui, pois fazemos algo que gostamos, e possuímos o status de pertencermos a uma elite intelectual. Mas em termos gerais, sofremos tanto quanto outros proletariados, que trabalham por um salário, as mesmas mazelas de nossa cultura, nossos dias são infindáveis repetições onde trocamos o tempo de nossas vidas por salários, para que os donos do dinheiro possam usar este tempo para viverem com a liberdade que não temos.

— Onde está o argumento físico?… — Foi perguntando Rubens, ao que Alice o olhou, séria, e ele se calou, para que ela continuasse:

— A percepção, consciente ou não, de que nossas vidas carecem de uma liberdade que, talvez, desse sentido à nossa existência, é uma fonte de tremendo estresse. Sabemos que enquanto uma elite pode usufruir a vida, o belo, e ter tempo para filosofar e de fato usar a mente, sem amarras, para sondar o mundo, nós temos que estar no trabalho das nove até a hora que a chefia achar conveniente. E, depois de uns anos disso, morremos sem deixar vestígio. Isso, se não for disfarçado com botequins, cerveja, futebol, telenovelas, jogatinas, cigarros ou outros escapes mentais, é de enlouquecer qualquer pessoa insensata o suficiente para ficar pensando sobre isso.

A mulher se inclinou ligeiramente para frente e pousou a mão sobre a de Steinberg, como quem o compreende e deseja confortá-lo.

— É isso que está te esmagando, caro Milton, a ponto de sua mente buscar desesperadamente um saída. Sua tese até tem um certo sentido, mas se há flutuação quântica, então, na prática, — ela se inclinou um pouco mais, olhando Milton bem nos olhos. Não chegava a ser uma cena de beijo, mas Steinberg estava pondo em dúvida se a sua vizinha era mesmo a mulher mais atraente que ele conhecia, quando a Doutora Alice completou: — tanto faz.

Ela ficou encarando o homem por mais um momento, tempo o suficiente para ele perceber linhas sutis em torno dos olhos dela, que denotavam ser a mulher mais madura do que ele pensou, à princípio. Então sua vizinha perdeu, em definitivo, o posto. Ainda assim Steinberg não era do tipo que se deixava abater tão fácil por charme e inteligência, e retrucou:

— Isso não quer dizer que eu não esteja certo.

— Navalha de Occam? Entia non sunt multiplicanda praeter necessitatem. Conhece?

— Sim. — Respondeu, em tom conformado, o homem. — Quer dizer, não, não em latim, mas sei o que é. A explicação para os fenômenos será sempre a mais simples.

— Muito bem. E o que é mais simples? Uma força misteriosa que faz o tempo se comportar exatamente como ele se comporta normalmente, ou sua mente, desgastada pelo estresse urbano e social, lhe pregando peças?

Milton Steinberg não sabia se sentia alívio ou não. Mas depois de trocar mais algumas palavras, inclusive de agradecimento, sem falar em e-mails e perfis em redes sociais, o jogador de Tetris apertou as mãos de ambos os doutores, e foi saindo. Enquanto esperava, solitário, um elevador, matutava sobre tudo aquilo.

Será que Occam estava certo sempre? E será que tanto fazia mesmo a forma como o espaço-tempo se comportava? A luz, indicadora de que o elevador acabara de chegar, se acendeu, mas o elevador desceu sozinho. Milton lembrou de seu raio de luz, que refletia em seus olhos quase diariamente, e pensou em medí-lo, se a intensidade fosse exatamente a mesma, não importando a hora da manhã em que ele o cegava, então, metaforicamente, era como se o elevador estivesse mesmo preso entre o térreo e o segundo andar.

Parou em frente a porta do escritório do Lewroy Cabeção e ergueu a mão para bater, quando percebeu que aquele era o momento padrão em que, nas histórias de cinema, ele ouviria algum segredo dos amigos que ainda estavam ali. Apurou os ouvidos e fez cara de divertido muxoxo ao escutar Rubens cochichando um deboche sobre ele: “flutuações quânticas, veja só o nosso campeão de videogames”.

Mas Steinberg fechou a cara quando ouviu a voz de Alice responder, em inglês e no mesmo tom baixo: “are not quanta, waves propagate in four dimensions, and more”.

Um momento depois a porta era aberta por dentro, por Alice, que saía, muito séria, mas Milton já havia ido embora.

Continua na próxima semana, não perca...

Leia a Parte 2 de "Sob o Olhar da Eternidade"

Agora é sua vez! Influencie no desenrolar desta história, deixe seu comentário aqui embaixo (onde está escrito "Comente, participe"), dizendo se você acha que Milton é louco, ou está mesmo preso em um mesmo dia:


Tags
10 years ago

Na mais absoluta profundidade da dimensão espacial, que aparentemente é plana e sem nenhuma ruptura, ocorrem os mais terríveis frenesis (turbulências) e isso impede uma conciliação amigável entre a Relatividade e a Mecânica Quântica.

Wikipédia


Tags
11 years ago

Mônica

Mônica

Opiniões e Resenhas sobre Mônica, a degustação do livro está um pouquinho mais abaixo:

"Quando recebi o livro, fiquei com receio de que fosse mais um daqueles livros de vampiro 'sem pé nem cabeça', me enganei completamente! Esse livro é surpreendente!"_ Carol Ferreira, Blog Pequena Morena.

"Livro delicioso!!! Me prendeu desde o primeiro capitulo."_ Eu Amo Leitura.

"Livro muito inteligente, com frases bem construídas, trama intrincada e uma capa linda. Creio que teremos uma série de sucesso!"_ Debora Barroso, Cinderelas Literárias.

"Fiquei completamente hipnotizado pelo trecho que li no site do autor! (O livro Mônica é) Sexy, sombrio, inebriante, instigante, avassalador!"_ Gustavo Henrique, Leitura Virtual.

"Thriller político histórico e Terror! Isso que é ficção, (o livro Mônica) nos faz pensar que é exatamente o que o governo está fazendo!"_ SakuraUchiha, Avaliadora TOP 50 da Amazon.

"Mônica é totalmente poderosa e nas palavras de Beyoncé... Ela é uma 'Grown Woman', não precisa dar satisfações e segue suas próprias ideias."_ Sayd Alcantara, Friendzone.

"Gosto de personagens desafiadores, sarcásticos e insubordinados. Tudo o que encontrei em Mônica."_ Flávia Leles, Literatura Informal.

"Além da leitura ser envolvente, gostei muito das críticas feitas pelo autor à atual política do Brasil, em razão da corrupção."_ Maisanara, Viajando Pelas Páginas.

"Será que ali poderia existir amor (entre um humano 'comum' e uma Criatura da Escuridão)? Só lendo mesmo para vocês descobrirem isso!"_ Kelly Cominoti, Aventuras na Leitura.

"Mônica é abusadamente sexy."_ Telma Myrbach, Surtos Literários.

"O autor Wagner Ribeiro, já me conquistou criando uma personagem tão marcante como Mônica."_ Victor Tadeu, Desencaixados.

Mônica

    Baixe a Degustação

Mônica

Versão eBook

Mônica

Versão Impresso

Leia Abaixo o Início do Livro:

— Merda! Merda, Mônica, por que fez aquilo?

A jovem mulher abriu os grandes, belos e expressivos olhos castanho-escuros, que a um momento estavam quase fechados, e sorriu francamente, ar de moleca zombeteira, colocando o indicador no lábio inferior e fazendo trejeito de geniazinha de antigo seriado de TV, enquanto pensava por um momento e então dizia, faceira:

— Impulso! Compulsão! — Mas o que ela queria mesmo com o sorriso brejeiro era que ele visse bem seus caninos, e encarasse a verdadeira natureza dela. Dane-se se ele sentia nojo, ela era o que ela era, e pronto. Aquele crápula arrogante haveria de engolir tudo o que Mônica significava, quisesse ou não.

O Agente Investigador Eduardo Araújo Weltman olhou para ela com desprezo, que ela devolveu acrescido de deboche e ironia, olhando-o de lado e dizendo para ele:

— Eu fiz meu trabalho, Edy. E você, pode dizer que fez o seu?

—  Monstro… — Disse ele, entre dentes.

— Então o que vai fazer lá dentro diante da Comissão? Se fosse me crucificar, teria trazido consigo a gravação. Cadê a gravação?

Ele estreitou os olhos, e respirou profundamente, lentamente. Era um homem charmoso, de traços fortes e masculinos, temperado por um sutil ar sensual de atrevimento, e tinha o que as mulheres chamavam de um belo sorriso, e onde as mais atentas viam uma boca carnuda, convidativa. A cereja do bolo, segundo Mônica, era que Weltman era, no fundo, tímido.

Naquele momento, no entanto, ele estava sério, carrancudo. Parecia tentar dizer algo que não conseguia expressar. Ficaram se encarando, a meio metro um do outro, sentados na luxuosa antessala da Comissão. Ambos agentes, ambos cientes que seriam interrogados acerca de uma missão que acabou em um banho de sangue, e que isso talvez lhes custasse bem mais que as carreiras. Havia um clique-claque em algum lugar, de algum relógio fora de vista, e nada mais, apenas o silêncio. Mônica ameaçou dizer algo, mas Weltman se levantou e foi falando:

— Eu… Destruí o CD com a gravação. Mas fora isso, vou cumprir meu dever lá dentro. E pedir meu afastamento da DCOR (1) imediatamente. É através do DCOR que mantenho minha ligação com os Dragões Vermelhos.

Ela ficou olhando para ele por um momento, e não soube o que dizer. Não obstante sua aparência tão jovial, Mônica estava viva há sessenta e nove anos e, apesar disso, não sabia o que dizer enquanto ele afirmava que iria embora. Ficou então séria, não tinha vontade de sorrir, e deu de ombros. Se ele queria ir para o inferno, que fosse, disse com veemência para si mesma, na tentativa de se convencer que pensava de fato assim.

Então a ampla porta metálica da sala da Comissão se entreabriu, e um assistente pôs metade do corpo para fora. O jovem moço avaliou por um segundo a linda mulher sentada, cuja pele clara e os longos cabelos em tons castanhos profundos contrastavam sensualmente, e então olhou para o homem, dizendo:

— Agente Weltman? O senador Coriolano pede que o senhor entre primeiro.

Eduardo ajeitou a gravata de seu terno, e sem olhar para Mônica, fez um sinal impaciente para que o jovem auxiliar entrasse na frente, e entrou a seguir. Diante das costas largas do homem que iria enfrentar a temida Comissão agora, Mônica Alencar Deveraux deixou finalmente uma expressão triste tomar conta de seus grandes e belos olhos, e murmurou:

— Eu sei o que você vai fazer, seu idiota… Vai me salvar.

Mônica

O depoimento a portas fechadas de Eduardo demorou cerca de duas horas. Então ele saiu, e passou por Mônica sem que trocassem uma palavra, mas mesmo sem olhar para trás, ela soube que ele havia parado no corredor e a olhava, as grossas sobrancelhas escuras vincadas de preocupação. Mônica sabia que era a agente mais destacada entre os Dragões, mas sabia também que era a mais controversa e a mais frágil diante da Comissão. Todos sabem que a Comissão tem ares de cordialidade e civilidade, mas que usa qualquer método para manter seus agentes na linha, e não raro julga pela morte dos agentes que acha perigosos para a instituição. E, sem a menor dúvida, Deveraux era a mais instável e perigosa peça atualmente em jogo.

— Boa noite, senhorita Deveraux. — Disse o senador Coriolano calmamente, enquanto retirava de uma pequena pasta alguns documentos, e um tablet, e os colocava sobre a mesa de ébano espelhado que estava a sua frente, entre ele e a aparentemente jovem agente. Ele não olhou para ela, que se sentava na cadeira solitária que ficava no centro do salão. Em frente a ela, feito juízes da vida ou da morte, os sete membros atuais da Comissão. Todos impassíveis, feito estacas afiadas apontadas para Mônica. Como a agente não respondesse, o senador ergueu o olhar aquilino, e repetiu com sua voz grave e soturna: — Boa noite, senhorita Deveraux…

— Boa noite. Aquilo ali no canto é um emissor laser?

— Sim, Deveraux. É uma solda laser industrial especialmente adaptada para emitir um único e intenso disparo, capaz de carbonizar você. A cerca de três metros em volta de sua cadeira há um campo invisível detector de movimentos. Se tentar se mover além deste perímetro, o laser vai mirar no seu corpo e disparar, tudo numa fração de segundo.

Mônica sorriu, sensual e fingindo-se divertida. Ela fitou o senador por debaixo de suas bem delineadas sobrancelhas, enquanto foi dizendo:

— Ah, mas para quê tudo isso? Eu sou apenas uma pobre menininha inocente. — E riu, um riso de menina mesmo. Pôde sentir os velhos se arrepiando de medo.

O senador desviou imediatamente os olhos dos de Mônica, e pigarreou incomodado, dizendo a seguir, ainda em seu tom monocórdio:

— Senhorita Deveraux, gostaríamos que nos fizesse um relato de suas atividades no desfecho da Operação Arani (2) onde a senhorita deveria apenas mandar um recado. — e ele frisou o termo, ela sabia, para que Deveraux lembrasse que eles possuíam o controle sobre a coleira dela. Seria uma coleira bem larga e folgada quando sua mãe, já bem idosa, e sua irmã, também muito velha, falecessem, pois talvez Mônica não ligasse tanto assim para filhos de sobrinhos. Talvez. A agente riu-se, com desprezo, e ele prosseguiu: — E acabou tomando para si a decisão sobre… Como deveria terminar aquela missão.

— Primeiro me diga o que Weltman disse.

— A senhorita veio aqui apenas responder…

— Senador. Eu vou lhe contar exatamente o que houve. Mas antes, olhe para mim…

Como Coriolano evitasse olhar para ela, Mônica respirou fundo, semicerrou os grandes olhos, concentrou-se em algo escuro dentro de si, e abriu a boca, falando com uma voz que era talvez a voz dos mortos, ou a voz inquietante do rumor assombrado de um oceano antigo, terrível e esquecido em algum recanto sombrio do Universo. Sua voz era um som apavorante, mas ao mesmo tempo hipnótico. Era um reverberar demoníaco, mas ao mesmo tempo belo, sua voz era tudo, menos humana, quando Mônica disse:

— Olhe para mim.

As gotas de suor começaram a brotar da testa do senador. Coriolano, o Coriolano Malvadeza ou o Sanguinário Gentil, como era chamado nos corredores do Senado, era um homem duro, firme e de grande poder, sua força de vontade era tremenda e notória, pois ele já fizera vergar presidentes, e mandara destruir mais vidas do que podia se recordar, ainda assim seu coração parecia querer rasgar o peito ao ouvir a terrível voz de comando daquela besta-fera em forma de mulher. Ele a odiava intensamente, nem sequer tentava esconder, mas como todos os outros da Comissão, devia saber que residia nela um trunfo de que não podiam dispor em seus planos para o futuro dos Dragões Vermelhos. Ela possuía um raro e genuíno dom sobrenatural. Até onde sabiam, nenhuma outra agência mundo afora possuía um ser como ela entre seus agentes.

— Olhe… Para… Mim.

Todos olharam para ela. Não havia um único par de olhos naquela sala e nas salas de vigilância, que monitoravam o lugar, que não tivesse se fixado na mulher alta, bonita e de aparência jovem e elegante, que estava sentada com sensual charme no meio da sala da Comissão. Mas por mais terrível e irresistível que fosse aquela voz horrenda e sedutora, Mônica não era onipotente, sua vontade não dominava completamente quem a ouvia, e vários guardas de segurança saíram das sombras nos cantos da sala, olhos vidrados nela, mas o instinto treinado os fazendo apontar diversos canos de fuzil direto para Deveraux. Coriolano, que olhava trêmulo de fúria bem diretamente para o olhar escarnecedor da agente, ergueu a mão, e os fuzis foram recolhidos, e ele, o senador, disse, num balbuciar quase selvagem:

— Weltman… Fez seu relatório… E disse que você não teve escolha senão entrar em conflito com todos, e que ele a ajudou a sair… E que você tentou ajudar a falecida agente Steiger, mas que os bandidos a esfaquearam… Figueiras está vivo e vai levar o aviso aos chefes dele… Agora, sua… Coisa… Diga como sobreviveu a tudo aquilo?

— Weltman pediu afastamento?

— Eu neguei.

— Sim… Sim… — Ela sorria — Na verdade o agente Weltman foi quem me conteve e me fez deixar Figueiras livre. Entenda, Coriolano, se me quer trabalhando para você, escreva no seu tablet aí, com suas mãozinhas nodosas, que Eduardo Araújo Weltman não é dispensável, ele…

— Como diabos você sobreviveu, porra?!!! — O grito salivante do senador foi tão súbito e violento, que Mônica se surpreendeu e calou-se, mas manteve o ar de zombaria que quarenta anos de treino lhe ensinaram a pôr no rosto quando queria se proteger do mundo. O senador tinha os olhos injetados e uma tal fúria que ela poderia jurar que ele também era, ou deveria ser um filho das trevas. Foi então que ela entendeu. Mônica olhou para ele longamente, enquanto Coriolano Malvadeza se recompunha e tomava das mãos de uma secretária um lenço e um copo de água. Em poucos momentos ele era novamente um homem elegante e sério, um político de carreira que se reelegeria vezes seguidas apoiado em seu carismático e paternal semblante e nas falcatruas políticas que sabia fazer como ninguém. Mas Mônica sabia muito bem o que ele desejava, e disse:

— Senador… Percebi algo muito interessante a seu respeito, e vou lhe contar. Você acha que eu sobrevivi aos tiros porque sou o que sou, e quer saber como eu o fiz. Pois o senhor deseja essa imortalidade, deseja ser como eu, não é? — E diante do olhar de asco contido e falso, e do silêncio muito esclarecedor de Coriolano, Mônica sorriu e disse, em sua ainda potente, mas agora bela e musical voz feminina, a sua voz natural: — Eu vou te contar então, senador do povo brasileiro, preste atenção que vou contar o que aconteceu naquela noite, mas não vou direto ao ponto, pois eu preciso deixar suas mentes atentas ao contexto. Era uma vez… Uma equipe da Polícia Federal que estava de campana na Bahia, vigiando de perto um político extremamente corrupto, o Deputado Antônio Bomeninno, há cerca de seis meses. No início objetivando apenas acumular provas contra ele para um eventual processo, se ele pisasse fora demais da linha demarcada pelo Governo. Mas os federais descobriram, quase sem querer, no meio do caminho, que algo muito grande estava sendo tramado por outro político, um tal Senador Figueiras, que era amante da mulher de Bomeninno, envolvendo propinas de milhões de dólares para manipulação de quem e como seriam feitos os softwares gerenciadores de novas versões das urnas eletrônicas no país.

— Sabemos de tudo isso…

— Avisei que não iria direto ao ponto, uma mulher precisa estabelecer contextos, Senador. — Aqui ela pausou com um sorriso entre falsamente simpático e verdadeiramente debochado — Bem, quando esta informação circulou pelos corredores da Federal, imediatamente os Dragões entraram em movimento, e encamparam a operação antes que a cúpula do Governo a mandasse para o limbo. Sabemos que é imprescindível para o bom funcionamento dos planos dos Dragões que os políticos corruptos que não estivessem nas mãos da organização fossem tirados do jogo. De modo que o que era apenas uma operação para acumular provas contra um ladrãozinho de quinta categoria, tornou-se um procedimento cirúrgico nosso, para extirpar outro bandido, de maior quilate. Para tanto os Dragões usaram o velho método de dar corda para que ele preparasse sua própria forca, então, quando ele buscou com intensidade contato com uma gigantesca empresa multinacional, os Dragões assumiram, infiltrando uma agente na negociação, chamada Érika Steiger, que para os gringos era uma especialista em negociações paralelas no Brasil, e para Figueiras, uma representante extra oficialmente contratada pela tal mega empresa. No fim das contas, para os Dragões, Érika deveria tirar o máximo de informação de Figueiras, e o deixar pronto para o abate. Mas não foi bem assim que tudo se desenrolou, os senhores sabem.

Mônica

Ocorre que Steiger não enviava notícias há semanas, quando a Comissão mandou a equipe envolvida no caso preparar uma nova inserção de agente infiltrado na operação de Figueiras. Coriolano escolheu pessoalmente a agente especial Mônica Alencar Deveraux como a próxima infiltrada, e tomou a última mensagem de Érika como base para colocar Deveraux no esquema, pois Steiger afirmava que Figueiras procurava febrilmente um hacker que possuísse conhecimentos sobre os sistemas de segurança do Senado. Mônica foi treinada e instruída para saber quebrar os códigos de acesso, e lhe foi dado um hardware especial, uma chave, que a permitiria entrar no sistema do Senado brasileiro, e provar que era a hacker que Figueiras precisava. Mônica, indicada a um comparsa de Figueiras através de um contato também sob controle da Federal, conseguiu uma entrevista virtual com um representante do Senador, e provou ali ser capaz de ajudá-los, então deixou seu número de celular, e ficou aguardando o contato. Foram duas longas semanas em um hotel de luxo baiano aguardando o chamado. Ela, Mônica, se fazendo passar pela engenheira de software Carmem Luzia Rodrigues, a hacker Carmina, e Weltman junto com outros agentes dando-lhe cobertura, disfarçados como hóspedes do mesmo hotel.

Weltman já ouvira falar de Mônica, e já há muito tempo estava bastante curioso a respeito dela. Devia ter ouvido muitas das estranhas histórias que contavam acerca da agente sobrenatural, que lutava sozinha contra vários homens, que era uma mistura de lobisomem com curupira (3), e tinha voz de Iara (4) que congelava a alma. Eduardo havia sido policial civil no Rio de Janeiro, trabalhando na divisão de entorpecentes, teve que lidar com todo o tipo de monstros, alguns dos piores dentro da própria polícia. Não gostava de dizer-se corajoso, era antes disso capaz de respeitar profundamente seus oponentes, e por agir assim chegou mesmo a sobreviver em antros de violência e corrupção com a moral razoavelmente intacta. Era, sim, apesar do que dizia, um homem bom e corajoso, mesmo que um tanto embrutecido pela vida. Portanto, provavelmente não sentiu medo quando esbarrou com Mônica bebendo um drinque no bar do hotel, mas alguma profunda e respeitosa curiosidade. Mal tinha trocado meia dúzia de palavras formais com ela desde o início daquela operação, e aquela poderia ser a oportunidade de conhecê-la pessoalmente. Ela agitou a cabeleira escura, para jogar as mechas para trás, e deu nele uma olhada treinada, miúda e desdenhosa. Provavelmente Weltman a achou, naquele primeiro contato, uma mulher bonita, mas absolutamente normal. As aparências são enganadoras, na maioria das vezes, então o homem resolveu dar mais um passo, feito um gato curioso, e disse simplesmente:

— Boa noite.

— Posso arrastar você para o fundo do lago, agente… Iara, já deve ter ouvido falar… — murmurou ela, quase sem olhar para ele, bem baixinho, de modo que só ele pudesse ouvi-la. Sua boca pareceu divertir-se com as palavras, pois a imagem fugidia de um sorriso passou por ela enquanto falava.

— Gostaria de conhecer a pessoa por trás do rótulo. Posso? — Disse ele, incisivo, mas ainda assim mantendo um tom suave na voz, que deu a ela um pressentimento de que o atraente e charmoso agente poderia ser alguém que ela gostaria de conhecer melhor. Até aquele momento pretendia tratá-lo com a acidez arraigada com que tratava a todos, mas aquelas palavras duras, mas honestas, a fizeram mudar de ideia.

Ela ajeitou-se na cadeira alta do bar, fez um sinal para o barman que colocou uma nova taça de vinho sobre o tampo à sua frente, e ela se apressou a dizer: — Mais uma, por favor. — E voltando-se para Weltman: — Bebe um chadornay comigo, cavalheiro?

— Vinho? Sim, obrigado. — Disse Eduardo.

— Bem, mas que tal sentarmos em uma mesa e verificarmos o que pode ser feito acerca de rótulos, monsieur?

Ele aquiesceu, e ambos foram para uma mesa mais reservada. Mônica pediu e levou consigo a garrafa de vinho. A aparentemente jovem mulher pousou sobre a mesa a garrafa e uma pequena e provavelmente caríssima bolsa que trazia consigo à tira colo. Era um tanto fora de protocolo que, durante a missão, eles se falassem assim, mas Weltman precisava saciar sua curiosidade, e Mônica precisava se distrair durante aquela noite tão parada, conversando com alguém interessante.

— Sabe que Coriolano vai reclamar feito uma velha coroca quando souber que quebrou o protocolo vindo me dar o prazer de sua companhia, não sabe? — Disse ela com um sorriso jovial e leve. Ela parecia tremendamente descontraída, mais ainda assim Weltman podia perceber algo no olhar de Mônica que recendia a coisa antiga, pesada, como se ela tivesse visto mais coisas do que sua idade aparente permitiria, e que muitas dessas coisas tivessem sido bem ruins. O homem reconheceu um pouco do seu próprio olhar no dela.

— Respeito o velho, mas ele não está aqui. Ele que se dane, o Malvadeza. Vou tentar saber quem ele é outra hora. — E sorriram um para o outro, riso franco, enquanto se serviam de vinho. Então Weltman voltou a falar: — Pois bem, quem é você, Mônica?

Mônica ficou mirando Eduardo, como se estivesse estudando até que ponto o cara poderia aguentar a verdade, o que fez o homem sorrir para ela, um sorriso que muitos chamavam de sorriso canalha, mas que era apenas a franqueza nua da alma dele, dizendo "somos de carne e osso". A bela mulher colocou a taça em que bebia sobre a mesa, acompanhando o movimento com os olhos. Depois voltou a olhar para o homem na frente dela e, para total surpresa do sujeito, entoou, sorrindo delicadamente, em uma voz também delicada e docemente afinada:

— Talvez você não entenda, mas hoje eu vou lhe mostrar. Eu sou a luz das estrelas. Eu sou a cor do luar. Eu sou as coisas da vida. Eu sou o medo de amar. Eu sou o medo do fraco. A força da imaginação. O blefe do jogador. Eu sou, eu fui, eu vou… — e concluiu, apenas recitando a letra, e não mais cantando, sem sorrir, na verdade com um tom taciturno no olhar: — Eu sou a beira do abismo…

E então, mudando novamente, agora com a expressão mais pura e delicada no olhar antigo, Mônica baixou os olhos, e ficou observando, sem ver, a taça de vinho quase extinto.

Depois de um longo momento fitando a garota, Weltman voltou a respirar. Ele não sabia o que dizer. Não fora ali paquerar Mônica, seu objetivo não era tão primário assim, embora ela o estivesse atraindo mais e mais, mas antes queria conhecer a tal super agente, coisa necessária se iriam operar profissionalmente juntos. Ocorre que ela o estava encantando, depressa, e ele acabara de descobrir que não sabia o que fazer quanto a isso.

— Bonito. — Ele disse, enfim.

— Apenas o Raul, sujeitinho doido, mas muito legal.

— Fala com intimidade, é fã do trabalho do cara?

— Não, eu o conheci pessoalmente, e avisei a ele que aquela história de "Grã Ordem Kavernista" ia lhe custar o emprego. — Ela deu uma piscadela e riu, Eduardo riu também.

Ele, encarando o bom humor dela como uma piada sobre ter convivido e aconselhado um artista morto quando ela ainda deveria ser um bebê, e meio sem se aperceber o que ele próprio estava fazendo, mas agindo simplesmente porque precisava agir, pegou ambas as mãos dela nas suas próprias, por sobre a mesa, e ficaram se olhando longamente. Então Mônica disse:

— Você não quer fazer isso. Eu sou a beira do abismo, lembra?

— Quando entramos para os Dragões, eles nos dão as fichas das pessoas que vão trabalhar em nossa equipe, e a sua era vaga, quase incompreensível,  como se você tivesse uma liberdade especial de colocar ali o que quisesse. Encontrei apenas alguns poemas escritos por você,  e uma foto sua… Nunca vi aquilo. Eu confesso que reclamei com o cadastro, e eles me disseram que o Malvadeza em pessoa mandou deixar como estava.

— Ah! — Fez ela, repetindo sem perceber o lindo e singelo sorriso de moleca da tal fotografia, e, claro, tangenciando o assunto a respeito das liberdades especiais dela — Sei qual é. A foto. Ah, fui pega totalmente de surpresa naquela foto!

— Estava encantadora, mas o que me impressionou ainda mais foram seus pensamentos… Os poemas, reclamei mas li. Durante o período de adaptação, eu treinei com homens que já haviam trabalhado contigo, e eles falavam a respeito de uma mulher corajosa, que eles respeitavam, mas que temiam muito, eu podia ver o receio deles nas entrelinhas, eles não tinham só medo, tinham verdadeiro pavor de você. E eu dizia pra mim mesmo que aquilo não tinha nada haver com a mulher dos poemas. Então achei que eu gostaria de conhecer a verdadeira Mônica, com a qual finalmente eu vou trabalhar.

— Ninguém conhece.

— Eu desejo honestamente conhecer. A verdadeira. — E ele ficou olhando para ela, que lhe devolvia um olhar doce, a coisa antiga em seus olhos parecendo arrefecer, se fazer menina, uma menina que sonhava, como todas as meninas sonham.

Então, sem resistir mais nem um segundo, Weltman inclinou-se em direção dela. E a beijou. Um beijo em crescente, um beijo que começou brando, mas tomou ares de tempestade, como se um devorasse a boca do outro! Doçura, vinho, e hálitos saborosos e passionais misturando-se, em uma sensação formigante e inebriante que lhes tomava os corpos, aquecendo-os e atiçando a fome de quero mais e mais! A tempestade deu lugar a suavidade, e voltou a rugir, duas, três vezes, e ninguém estava contando mais depois disto. Quando, enfim e depois de longo e marcante beijo, o fôlego se acabou (mesmo que o ardor só estivesse começando) abraçaram-se, aconchegando-se um ao outro. Então Mônica, que pousou a cabeça no ombro do homem, pôde sentir o odor masculino dele, penetrante e atraente, um cheiro muito bom, excitante, quente, muito quente, que a envolvia numa sensação incrível de liberdade e submissão ao mesmo tempo, de segurança… Mas também, após um momento de inocência ardorosa, que passou rápido demais, Mônica pôde sentir a pulsação hipnótica e acelerada do sangue teso e passional de Weltman na jugular do pescoço dele, podia mesmo sentir-lhe o gosto exalando da pele.

Quando ela deu por si, percebeu que ansiava por beber da vida dele, e que o predador voraz dentro dela começava a vibrar, inflamando-se! Mônica, imediatamente, soube que ela não deveria e não poderia fazer aquilo, que não poderia sequer arriscar se apaixonar por ele, não poderia jamais amar de novo, e matar de novo! Foi neste instante que ela se desesperou, mais uma vez, com sua sina monstruosa: quando foi engolida pelas trevas, quando voltou do mundo das sombras e do ar, há mais de quarenta anos atrás, Deveraux passou a viver o estigma de sua fome medonha, capaz de matar quem lhe era indiferente, quem ela temia, mas também quem ela amava. Mônica sentiu crescer o angustiante horror de si mesma em seu coração! Subitamente levantou-se, apavorada e enojada de si mesma! A cadeira em que ela havia sentado caindo para trás, com estardalhaço, e os olhos de Weltman tentando entender o por quê daquele rompante. Ela sabia o que precisava dizer, e disse, não muito alto, mas com intensidade cortante:

— Já descobriu o gosto que eu tenho? Pode dizer aos outros rapazes que sou de carne e osso, pois deve ter apostado com eles que iria vir aqui me dar um pega e ver qual é, não foi?

— Eu não…

— Ah, me poupa, Weltman, você vai me dizer que é um cara que não julga as pessoas? Que não vai me crucificar também assim que descobrir o monstro que eu sou. Pois escreve aí, agente Eduardo… — Em seguida ela cantarolou novamente a música, com afinação, mas também com ácida ironia na voz: —  Eu sou o sangue no olhar do vampiro.

E ela sorriu com um falso deboche, e saiu caminhando para longe com elegância, deixando o homem atrás de si entendendo muito pouco, e aborrecido por ter sido julgado sem direito a defender-se, e ainda mais contrafeito por causa da impressão de que ela brincou com ele durante aquele beijo. Em essência sendo um homem tímido, quando se tratava de relações, ele se sentiu um completo idiota, envergonhado por, pela primeira vez desde a juventude, se deixar levar por um momento bobo e passional, e embaraçar-se daquele modo com uma colega de trabalho. Pior ainda se sentia quando, olhando para dentro de si mesmo, percebia que a mulher não deixara nele uma impressão passageira.

Somente quando Mônica, por sua vez, entrou no elevador, e se viu absolutamente sozinha, foi que se permitiu chorar. Chorar por, há mais de quarenta anos, estar morta. Sentia-se e transpirava solidão, uma solidão que nenhum ser humano seria capaz de experimentar, enquanto humano. A mulher apoiou as costas no espelhado interior do elevador, e, torcendo para que ninguém entrasse (o que, dado seu estado e sua natureza sombria, afastaria mesmo qualquer um que não tivesse um motivo de vida ou morte, ou que possuísse força de vontade sobre-humana), olhou para o alto, como buscando um Deus que ela, sinceramente, almejava existir, e deixou lágrimas ardentemente dolorosas escorrerem-lhe pelas faces suaves.

Justo naquele instante seu celular chamou, com mensagem de Figueiras, marcando encontro com ela para a noite seguinte.

CONTINUA…

Gostou? Clique e adquira o livro agora mesmo:

Mônica
Mônica

Versão Impresso

DCOR: Diretoria de Combate ao Crime Organizado – Polícia Federal do Brasil.

  Versão eBook

_____

Arani: do Tupi Guarani, significa "tempo furioso".

Curupira: Ser da mitologia brasileira que protege os animais e florestas, que protege os tesouros do Brasil.

Notas de Rodapé:

Iara: Outra criatura da mitologia brasileira, também conhecida como Mãe D'água, espírito de incrível beleza feminina, que atrai os incautos para afogarem-se nas águas de lagoas assombradas por ela.


Tags
11 years ago

Para Gostar de Ler (Muito)

image

Se quer compor o livro, aqui tem a pena, aqui tem papel, aqui tem um admirador; mas, se quer ler somente, deixe-se estar quieta, vá de linha em linha; dou-lhe que boceje entre doutros capítulos, mas espere o resto, tenha confiança no relator destas aventuras. _ Machado de Assis

O Jovem Mestre Jedi André Farzat costuma dizer, brincando comigo, que eu não tenho estante de livros. Que eu tenho é um abatedouro de livros.

Pois é, lendo, eu fui a estes e a outros lugares tão ou mais extraordinários! Vagueei em universos paralelos, miniaturizei e mergulhei no cérebro humano, me descobri imortal, testemunhei a construção e destruição da máquina da felicidade, encontrei a assinatura do artista que engendrou o Cosmos no "π", vislumbrei a terceira onda, ganhei o lugar do jogador número um, vi árvores e vassouras falantes, magos, robôs sem e com alma, encontrei o fim e o recomeço do Universo, aprendi a essência da filosofia, da política, antropologia, astronomia, etc, etc, etc, e compreendi completa e profundamente que a ignorância só abençoa àqueles que dominam os desengenhosos.

Ler é fundamental, expande horizontes, te torna mais capaz de se defender, mais imune a que te façam de besta, de gado, impede que você seja fácil de manipular e manobrar, te faz ser crítico e reivindicador de seus direitos tanto quanto te faz zeloso dos seus deveres, te dá ferramental intelectual para compreender o outro, e fazer do outro sempre fim, nunca meio, e portanto te põe capaz de buscar a serenidade e a felicidade verdadeira através da sabedoria e do desapego às tolices materiais de nossa sociedade de consumo inútil, e, além disso tudo, mantém seu cérebro saudável (e o restante do teu corpo também, pois alivia o estresse, e te propicia entender melhor o que lhe diz seu médico, e a se cuidar melhor). Ler faz teu espírito engrandecer, e torna teus caminhos sempre renovados e possíveis, “nada é nunca, e nunca é não”, e o dono do teu destino é você mesmo, acima de dogmas, sob a Luz Altíssima da Razão e da Fé sapiente.

Mas como, me perguntam, se consegue aprender tal arte? Como se aprende a gostar de algo que, a priori, parece aos olhos de alguns (giro o botão de minha empatia para o grau máximo para entender isto) maçante?

Bem, hoje um dos meu amigos, o caríssimo e inteligentíssimo Mestre Vinícius Aragão, numa conversa comigo me propôs solução: assim como se vai à academia para enrijecer músculos com disciplina, também se pode desenvolver as conexões neurais com um pouquinho de disciplina e exercícios.

Concordo, e te proponho exercícios de libertação do espírito da leitura em você, para revolucionar também tua Vida. Assim:

Peque algo para ler que tenha haver contigo. Qualquer coisa. Algo que te acrescente, por exemplo um livro técnico para o trabalho, ou umas revistas divertidas, quadrinhos talvez, eu adoro quadrinhos, ou mesmo o velho e bom livro. Enfim, pegue uma leitura qualquer que não te desagrade ao menos.

Então leia uns pequeninos dez minutos disto por dia. Sim, vai acontecer dia em que você não conseguirá, então apele para a disciplina, para a força de vontade, por fim para a rebelde teimosia se necessário, seja persistente, e não desista, nunca! Seja brasileiro, tenaz, indomável, arranque os seus dez minutos diários de leitura do tempo gasto com aquele joguinho viciantemente inócuo do celular, ou daquelas piadinhas vagas e igualmente inócuas postadas e repostadas nos faces e whatsapps da vida, e leia. Diariamente, dez míseros minutos. Leia.

Pegue rítimo, e leve esses ingredientes anteriores ao forno dos dias, e deixe o senhor tempo dourá-los, e, repare, vai chegar um momento, muito antes do que você pensa, muito antes mesmo, em que dez minutos serão pouco, e cada vez maior será o seu coração, e sua vontade de ler!

Já reparou numa coisa? Ditadores, quando querem subjugar e escravizar um povo, a primeira coisa que fazem é queimar livros.

Só dez minutos. Eu aposto em você!


Tags
11 years ago

Aqueron (*)

Mais um trabalho original para vocês, caros leitores. Este é um roteiro para um scifi televisivo, com toques de suspense e terror, e ainda guarda parte da formatação original em que um roteiro é escrito, que difere em muito de textos romanceados. Repare por exemplo que as falas não tem travessão, mas são antecedidas pelo nome do personagem que fala. Espero que vocês se divirtam, e, quem sabe deixem suas imaginações fluirem de tal maneira que lendo este roteiro, se vejam investigando a miteriosa nave desgarrada junto com os protagonistas, e tomem um ou dois sustos... ;-)

image

Roteiro Original de: Wagner RMS & Flávio Langoni.

(*) Aqueronte: Filho de  Hélios e de Gaia,  foi transformado  em rio e precipitado nos infernos como punição para uma antiga  falha; tinha fornecido água aos Gigantes quando estes lutavam contra Zeus (Júpiter). Suas  águas  são  amargas,  lodosas e burbulhantes. Transportados pela barca de Caronte (Queronte, Caron, Charonte, Charon), os mortos devem atravessar este rio para atingirem a morada definitiva. Também chamado de rio Styx.

Canto III - A Divina Comédia - O rio Aqueronte:

Por mim se vai à cidade dolente, Por mim se vai à eterna dor, Por mim se vai à perdida gente. Justiça moveu o meu alto criador, Que me fez com o divino poder, O saber supremo e o primeiro amor. Antes de mim coisa alguma foi criada Exceto coisas eternas, e eterno eu duro. Deixai toda esperança, vós que entrais!

TITLE CARD:

"PARTE I

GÊNESE: NAVEGANDO EM AQUERON

O INÍCIO DO SÉCULO 22"

O VAZIO ENTRE OS PLANETAS, ONDE UMA ESFERA BERNAL, HABITÁCULO DE AÇO, GIRA LEVANDO EM SEU INTERIOR CIENTISTAS E HOMENS DE FÉ, QUE QUEREM ATINGIR O CAMINHO ENTRE OS MUNDOS.

No casco, por enquanto polido, da esfera, lemos uma série de traduções, para várias línguas, da palavra “Fé”. Terminamos confrontando a palavra em português. Então nos afastamos e vemos o todo, e a esfera gira, lentamente, enquanto sua superfície reflete tanto a luz do sol mais próximo, quanto a suave radiância das estrelas distantes. Uma série de torretas alinhadas em sua linha do equador parece incandescer lentamente, enquanto vozes no rádio conversam com uma distante e oculta base:

ESFERA:

“Estão nos ouvindo? O sistema de criptografia online está funcionando bem? Essa é a comunicação número seis. Depois dos dois meses de silêncio de rádio, estamos prontos e vamos abrir os portões agora. O núcleo sofreu ondulações, mas está operacional, e as torres de dissipação de campo estão se aquecendo, a qualquer momento o rajada de plasma-quantum deve abrir o canal de contato entre as branas.”

BASE DE OPERAÇÕES DO PROJETO AQUERON – GUIANA FRANCESA:

“O sistema está permitindo comunicação indistinguível do ruído de fundo do espaço. Mas aqui o decodificador está funcionando muito bem, recebemos sua transmissão de número seis claramente. Desejamos boa sorte, que vocês encontrem A Verdade...”

As torretas estão acesas, e um campo de distorção se forma em torno do equador da esfera, e se expande, cobrindo lentamente a superfície da esfera...

ESFERA:

“Amém. Muito bem, o campo se formou e está estáv... E a qual... Disparo de plasma... Devem estar ocorrendo distorções... Rádio... Todos estamos muito felizes!”

As torretas subitamente explodem, em sequência, silenciosamente, e o campo que cobria a esfera vai escurecendo, até que se percebe que a esfera desaparece lentamente.

BASE DE OPERAÇÕES DO PROJETO AQUERON – GUIANA FRANCESA:

  TITLE CARD:

"PARTE II

O VAZIO: ENTRE A TERRA E A LUA

PRÓXIMO AO FIM DO SÉCULO 22"

VISTA DO ESPAÇO, EM PANORÂMICA, MOSTRANDO A LUA EM PRIMEIRO PLANO, E À DISTÂNCIA, O PLANETA TERRA.

Pode-se observar estrelas fulgurantes que se movem de cá para lá, que nada mais são que o rastro de poderosos foguetes das naves em tráfego entre a Terra e seu satélite. Vozes no rádio parecem entretidas em monótonos diálogos, controlando o ir e vir de naves. Subitamente, vinda da noite eterna, uma forma sombria e esférica começa a eclipsar a lua, e as vozes no rádio se exaltam:

CONTROLE DE VOO WELLS VILLAGE – LUA:

“Aqui é o Controle de Tráfego da base lunar Wells Village. Temos um estranho no radar. Tem algum veículo de carga a zero-sete-zero da elíptica que não se identificou?”

CARGUEIRO LANÇADOR MAGNÉTICO VESTA:

“Wells, aqui é nave de carga Vesta RX 7792. Essa não era minha janela de lançamento? Tem mais alguém lá?”

Há uma pausa. Enquanto a esfera, lentamente, cobria toda a lua, tomava mais e mais substância, como que solidificando, feita de alguma massa escura como o vácuo, que vai tomando a forma e o peso de aço em lâminas enegrecidas e semidestruídas. Pode-se perceber que a imensa esfera deixa um rastro de pequenos objetos, pedaços de sua couraça que parece se desfazer lentamente. Então os diálogos de rádio recomeçam:

ESTAÇÃO DE ÓRBITA INTERMEDIÁRIA TSIEN:

“Aqui é a estação Tsien RY 33, falando. O que vocês tem aí, em 0-7-0, Wells? Nossos detectores gravimétricos apontam uma grande massa vindo em direção à rota de Camberra. É um meteoro?”

NAVE DE TRANSPORTE TERRA-MARTE ABRAHAM LINCON:

“Até daqui podemos ver a coisa! Somos a Lincon RX 3459 e estamos a 0-2-3, e podemos ver a esfera daqui. De quem é? Não é americana.”

CARGUEIRO LANÇADOR MAGNÉTICO VESTA:

“Wells, da Vesta de novo. Suspendam os lançamentos. Tirem todo mundo daí.”

ESTAÇÃO DE ÓRBITA INTERMEDIÁRIA TSIEN:

“Ela vem direto prá nós! Se resvalar em nós lança a Tsien sobre vocês, Wells, se o choque for direto, explodimos sobre o Amazonas. Tirem essa merda dali! Vai acabar matando muita gente!”

CONTROLE DE VÔO WELLS VILLAGE – LUA:

“Calma, Tsien. Vocês são a prioridade. O pessoal da Busca e Salvamento já foi acionado. Calma! Temos... Cerca de 12 horas para o primeiro impacto. Vai tudo correr bem...”

O ponto de vista se desloca, girando pelo espaço, indo direto contra a luminância radiante do sol. As vozes no rádio, agitadas e nervosas, vão se calando lentamente, como que perdidas na escuridão que ficou para trás.

Aqueron (*)

TITLE CARD:

"PARTE III

NAS SENDAS ESCURAS: SOB O UMBRAL

6 HORAS E 27 MINUTOS PARA O PRIMEIRO IMPACTO "

A INTENSA LUZ SOLAR SE CONVERTE NOS FOGUETES DE DESACELERAÇÃO DE UMA NAVE DA FORÇA DE BUSCA E SALVAMENTO, QUE SE APROXIMA DA ESFERA, QUE AINDA MANTÉM SEU ASPECTO DESGASTADO E SOMBRIO. ELA É UM “PLANETA MORTO”.

A primeira nave destacada pela Força de Busca e Salvamento gira no espaço, e com pequenos jatos de manobra se posiciona exatamente sobre o polo da esfera, ganhando rotação para se equalizar com a rotação dela. Com um pequeno empuxo de seus jatos principais avança, indo acoplar o anel de atracação em sua proa ao disco de contato da esfera. Mais uma vez por rádio, se ouve o piloto da nave recém chegada dizendo:

COM. DARIO REIS – NAVE DE BUSCA E SALVAMENTO  ABADDÓN RX4:

“Controle da missão, aqui é a Abaddón RX4, comandante Reis, conseguimos uma atracação perfeita com a esfera, as alterações feitas pelo tenente Mebarak funcionaram com o sistema antigo da esfera. Temos permissão para abordagem?”

CONTROLE DA MISSÃO DE BUSCA E SALVAMENTO:

“Abaddón RX4, estamos usando a antena do Maranhão, se perceberem algum desvio de frequência, não se alarm... A antena sul-africana está em repar... Congratulações pelo voo plano, e em resposta a sua pergunta: permissão concedida. Boa sort... Em cerca de meia hora a segunda nave deve chegar aí, e... Precisar de acesso por uma escotilha, já que... Confirma que a esfera só tem um anel de atracação.”

COM. DARIO REIS – NAVE DE BUSCA E SALVAMENTO  ABADDÓN RX4:

“Estamos tendo falhas de rádio, sim. Existe um radiofarol na esfera emitindo um pulso confuso, isso deve estar atrapalhando ainda mais as comunicações. Vamos entrar os dois, e Mebarak acha que a cerca de vinte e cinco metros temos uma escotilha de fácil acesso para o pessoal da segunda nave. Já podem confirmar qual foi a segunda nave destacada para cá?”

CONTROLE DA MISSÃO DE BUSCA E SALVAMENTO:

“Já... RX7... Partiu... Ela... Lua...”

COM. DARIO REIS – NAVE DE BUSCA E SALVAMENTO  ABADDÓN RX4:

“A interferência de rádio está aumentando. Vamos abordar imediatamente a esfera e tentar identifica-la e desativar este radiofarol em curto. Daqui a duas horas nós emitiremos um relatório por pulso de maser. Abaddón RX4 desligando.”

A escuridão cinzenta do interior da esfera parece transpirar uma dor antiga e esquecida, mas ainda viva. As imagens são obscuras e difusas, imersas em uma escuridão opressiva, espessa, parece que percorremos um pequeno e lúgubre corredor, ou, para a imaginação tocada pelo medo, parece que descemos pela garganta monstruosa de uma criatura que nos devora. Então, subitamente, um som metálico, um ranger, uma lâmpada tremeluzente e de um verde desgastado pisca duas vezes, e uma fresta de luz, bem no meio do campo de visão, se forma e se expande. À volta dela temos a sensação de que, junto com o negrume, coisas escuras e fugidias se encolhem e correm da luz que entra, podemos ouvir mesmo, quase no limite entre o som e o silêncio, um choramingar, gritos muito distantes talvez, e um esgar horrendo que parece demonstrar todo o terror que aquele lugar escuro oculta. A perspectiva gira. Não estávamos descendo, mas subindo, do interior para o casco polar da esfera. É a escotilha, a porta de acesso do compartimento estanque do anel de atracação, sendo aberta pelos dois homens da Abaddón que estão entrando. Eles usam trajes pressurizados, flutuando mansamente, na ausência de gravidade do eixo da esfera, e têm somente as luzes que carregam para se guiarem no escuro. No rastro do facho de luz, as coisas obscuras se retorcem e se encolhem, fugindo.

COM. DARIO REIS:

“Ramon! Viu aquilo?”

TEN. RAMON MEBARAK:

“O quê? Não, não, desculpe, eu estava prestando atenção ao sensor atmosférico. Tem ar aqui. Está embolorado, mas respirável. O que foi que viu?”

COM. DARIO REIS:

“Esquece. Se tem ar, tem som... Esse lugar parece morto, mas talvez tenha alguém por aqui. Esse poço sem gravidade deve seguir direto até o núcleo da esfera. Será que dá para ouvir alguma coisa?”

TEN. RAMON MEBARAK:

“Vou ligar o receptor de som externo do meu traje...”

COM. DARIO REIS:

“Ramon... O que houve? Está pálido.”

TEN. RAMON MEBARAK: (Vozes Murmurando)

“Ouvi umas vozes...”

COM. DARIO REIS:

“Eu não ouço nada. E meu sistema de microfones externos está em ordem. Talvez algum sobrevivente tenha falado rapidamente pelo intercomunicador de bordo, e não percebi.”

TEN. RAMON MEBARAK: (Vozes Murmurando)

“Não, não... Algo muito baixo, quase abaixo do nível de audição... Não está ouvindo mesmo? Um murmúrio baixo, como... Como... Uma prece, talvez, um falatório baixo e repetitivo...”

COM. DARIO REIS:

“Prece? Não! Não ouço nada. Sua mistura respiratória está bem?”

TEN. RAMON MEBARAK: (Vozes Murmurando)

“Verificando... Estou bem. Não é delírio, há um som sim. Bem, detectamos fontes de energia funcionando aqui. Talvez algum aparelho ainda ligado, ou alguma gravação em um compartimento longe daqui, quem sabe? Mas tem alguém murmurando algo aqui dentro...”

COM. DARIO REIS:

“Talvez teus ouvidos sejam melhores que os meus. Temos menos de quinze minutos para alcançar o equador da esfera e preparar uma escotilha externa para o pessoal da outra nave entrar. Consegue ignorar o som e seguir adiante?”

TEN. RAMON MEBARAK: (Vozes Murmurando)

“Mas é claro. Perdi o medo do escuro aos oito anos de idade. E as tais vozes ainda não estão me mandando matar ninguém, comandante.”

Mebarak sorri, e Reis o observa por um momento, e então dá de ombros, com um meio sorriso, e seguem por um corredor lateral. E a escuridão, regozijando-se e correndo, faminta e formada por montes de seres feitos de treva, vai atrás dos dois homens, devorando as réstias de luz que eles deixavam para trás.

Aqueron (*)

TITLE CARD:

"PARTE IV

NAS SENDAS ESCURAS: O BARQUEIRO.

5 HORAS E 46 MINUTOS PARA O PRIMEIRO IMPACTO"

O VAZIO SALPICADO DE ESTRELAS, AO FUNDO O SOL BRILHA POUCO ACIMA DA TERRA, QUE É VISTA DO TAMANHO DE UMA MOEDA. RECUANDO, AS ESTRELAS, O SOL E A TERRA SE DISTORCEM, SUJOS, E PERCEBEMOS O GROSSO VIDRO DE UMA ESCOTILHA, E RECUANDO AINDA MAIS, DOIS HOMENS TRABALHAM NESTA ESCOTILHA, DEITADOS CONTRA ELA.

Os dois homens estavam agora na área do equador da esfera, “deitados” na superfície interna do casco exterior, pois a gravidade artificial no equador da esfera era na realidade força centrífuga, que os obrigava a ficarem em pé contra a face interna da gigantesca bolha de aço. No “chão”, sob eles, jazia a escotilha externa. Eles haviam despressurizado a câmara em que estavam, e  Mebarak usava um sistema portátil de computador pouco maior que a palma de sua mão, e fino como uma prancheta, para acessar os sistemas eletrônicos de travamento da escotilha externa. Reis forçava, resmungando um pouco, o sistema circular de travamento. O rádio ainda não funcionava, mas o procedimento de entrada do pessoal da outra nave de busca e salvamento havia sido definido antes da falha total do rádio de longa distância. Eles tinham que abrir aquilo ali para que os outros entrassem.

COM. DARIO REIS:

“Nnnnnn... Ok, está abrindo... Mebarak, e as vozes?”

TEN. RAMON MEBARAK: (Vozes Murmurando)

“Ainda estão lá... Mas estão mais indistintas.”

COM. DARIO REIS:

“Devemos estar longe da fonte agora. Ainda bem que isso abriu rápido. Em alguns minutos eles chegam aqui...”

Alguém! Um traje! Um corpo? As luzes internas de um capacete formam sombras nos olhos dela, como se as órbitas fossem profundas e horrendamente vazias. Por um segundo Ramon congela, e Reis tenta se afastar da porta de um salto. Então a pessoa envolta no traje espacial começa a entrar, e estende a mão. Mebarak hesita, mas acaba por tomar a mão da mulher, que se projeta para dentro da esfera. Reis é o primeiro a falar:

COM. DARIO REIS:

“Como fez o trajeto da RX7 até aqui tão rápido?”

DRA. SHARON:

“O caminho foi fácil. Muitas estruturas de apoio. Assustei vocês?”

TEN. RAMON MEBARAK:

“Eu... Creio que sim... Não esperávamos que você viesse tão rápido.”

COM. DARIO REIS:

“Veio sozinha?”

DRA. SHARON:

“Nunca estou só.”

COM. TALES LUCANO:

“Podem me dar um ajuda aqui?”

Outro astronauta entra pela escotilha. Novamente Mebarak estende a mão e ajuda o novo tripulante a ficar de pé na parede interna da esfera metálica. Todos se entreolham por um momento, então Lucano se apresenta:

COM. TALES LUCANO:

“Tales Lucano, se precisarmos destruir a esfera, eu farei isso, sou perito em explosivos.”

COM. DARIO REIS:

“Comandante Dario, estou no comando desta missão.”

DRA. SHARON:

“Sharon. Sou médica.”

TEN. RAMON MEBARAK:

“Eu sou engenheiro de sistemas... Ramon. Vamos andando? Para isso acabar logo... Ei, Dario, as vozes... Pararam...”

COM. TALES LUCANO:

“Vozes?”

COM. DARIO REIS:

“Explico no caminho. Achamos que existe uma fonte de áudio funcionando em algum lugar distante desta esfera. Se o som parou, acho que isso é um bom sinal. Estamos ficando calmos por aqui, Ramon... Bem-vindos... Doutora, comandante... Vamos.”

Sharon olha para Mebarak de forma enigmática, e ele devolve o olhar. Enquanto isso Reis fecha a escotilha externa, indo em direção ao centro da esfera. Lucano lança um olhar para a mulher, e murmura, enquanto mergulham na escuridão interna:

COM. TALES LUCANO:

“Médica...”

Aqueron (*)

TITLE CARD:

"PARTE V

NAS SENDAS ESCURAS: MORTE COMO COMEÇO.

4 HORAS E 53 MINUTOS PARA O PRIMEIRO IMPACTO"

MAIS UMA VEZ OS CORREDORES ESCUROS. AGORA SEM OS TRAJES, DEIXADOS PARA TRÁS PARA QUE ELES GANHASSEM AGILIDADE, OS QUATRO ASTRONAUTAS CAMINHAM SEGUINDO OS FACHOS AZULADOS DE SUAS LANTERNAS. NOVAMENTE A ESCURIDÃO A VOLTA DELES PARECE SE RETORCER, ENQUANTO OS HOMENS E A MULHER ULTRAPASSAM O MAIS RÁPIDO QUE PODEM CORREDORES, PASSADIÇOS, ESCOTILHAS, E UM OUTRO SEM NÚMERO DE ACESSOS NO LABIRINTO INTERNO DA GRANDE ESFERA.

Os três homens seguem a frente. A mulher vem por último. Vez por outra Lucano lança um rápido olhar para ela, pois ele está logo à frente de Sharon. Há muitos minutos todos caminham sem dizer uma palavra, oprimidos pela escuridão, e pelos sons. As vozes que enervaram Mebarak se calaram, mas outros barulhos pareciam aumentar e se diversificar, à medida que mergulhavam mais e mais na esfera. Sons de ranger, como se o metal da esfera estivesse se rasgando lentamente em algum lugar. Às vezes um chicotear denotava que tirantes de aço se rompiam aqui e ali, explodindo em um grito metálico.

COM. DARIO REIS:

“Ramon, acha mesmo que foi uma boa ideia entramos sem os trajes pressurizados?”

TEN. RAMON MEBARAK:

“A estrutura geral da esfera parece bem comprometida, mas não detectei nenhuma rachadura no casco, nem vazamento de pressão interna. Acho que seremos mais rápidos sem os trajes.”

COM. TALES LUCANO:

“Entrar e sair bem rapidamente parece ser o que quer, não é engenheiro?”

Mebarak se vira para Lucano com cara de poucos amigos, mas um violento estalar seco faz com que ele largue a lanterna. Reis se vira para eles (ele era o primeiro da fila), mas Ramon tentava pegar a lanterna, Tales havia desaparecido, e Sharon mantinha o facho de sua lanterna direto para frente, cegando Dario. Por um momento reinou uma confusão de luz e escuridão, e as vozes desencontradas:

COM. DARIO REIS: (Vozes Murmurando)

“O que houve? Quem é? O que é isso? Tire a luz da minha cara, doutora!”

DRA. SHARON:

“Lucano. Ele se foi...”

TEN. RAMON MEBARAK: (Vozes Murmurando)

“Lance a luz aqui! Preciso achar minha lanterna! Está escuro! Algo o atacou!”

COM. DARIO REIS: (Vozes Murmurando)

“O que foi isso, Ramon? Explodiu algo? Quem atacou?”

TEN. RAMON MEBARAK: (Vozes Murmurando)

“Ali! Um cabo de aço se rompeu!”

DRA. SHARON:

“Achei o comandante Tales.”

COM. DARIO REIS: (Vozes Murmurando)

“Onde? Mostre!”

Mebarak acha sua lanterna, que havia se desligado. Ela a ativa rapidamente, ilumina por um breve momento o cabo de aço recém partido que balança lentamente em um canto, e os fachos de luz convergem para se unir ao de Sharon, e iluminam Tales. O comandante jaz deitado no chão em um canto, não se vê nenhum ferimento, apenas o peito do macacão de Lucano está sujo de graxa em um tira que cruza o peito. A médica se agacha rapidamente, e examina o homem, dizendo por fim, em seu tom monocórdio:

DRA. SHARON:

“Está morto. Ao que tudo indica a pancada do cabo de aço não o cortou, mas provocou alguma concussão, ou parada cardíaca. Vou esclarecer na autópsia.”

Ocorre um minuto de silêncio, quando eles se entreolham.Dario mais uma vez ilumina o cabo de aço, e novamente, ele tem a impressão de ver a escuridão em volta do cone de luz de sua lanterna se contorcer.

TEN. RAMON MEBARAK:  (Vozes Murmurando)

“Eu... Deveria ter previsto isso...”

DRA. SHARON:

“Ninguém prevê esse tipo de coisa, Ramon.”

COM. DARIO REIS: (Vozes Murmurando)

“Ela tem razão.”

TEN. RAMON MEBARAK: (Vozes Murmurando)

“Vamos levar o corpo para a nave...”

DRA. SHARON:

“Sejamos práticos: temos pouco tempo. Vamos ao centro da esfera, verificar se podemos ativá-la e tirar ela da rota de colisão. Quando voltarmos, levamos o comandante Lucano conosco.”

COM. DARIO REIS: (Vozes Murmurando)

“Seu pragmatismo é impressionante, Sharon.”

DRA. SHARON:

“Ossos do ofício.”

TEN. RAMON MEBARAK: (Vozes Murmurando)

“Dario, acho boa ideia terminar logo a missão...”

COM. DARIO REIS: (Vozes Murmurando)

“Ok. Vamos em frente. Tem certeza de que achamos Lucano quando voltarmos?”

TEN. RAMON MEBARAK: (Vozes Murmurando)

“Estou mapeando os corredores em meu PAD. Vamos voltar exatamente por onde entramos.”

COM. DARIO REIS: (Vozes Murmurando)

“Vamos seguir em frente. Ramon, as vozes...”

TEN. RAMON MEBARAK: (Vozes Murmurando)

“Está ouvindo?! Consegue ouvir?”

DRA. SHARON:

“Ignorem. Vocês precisam ignorar e focalizar na missão.”

TEN. RAMON MEBARAK: (Vozes Murmurando)

“Sharon, não está ouvindo?”

DRA. SHARON:

“Não, Ramon. Alucinação auditiva. Ouça, comandante, vocês estão sob forte estresse. Esta é a hora de por em prática o treinamento que tiveram, e se concentrarem na missão. Confiem em mim.”

Há um silêncio constrangido. Então Dario começa a caminhar de novo em direção ao centro da esfera, seguido rapidamente pelos outros. Sharon lança de longe um último raio de luz sobre o corpo de Lucano. O braço do homem, que a médica pousou sobre o próprio colo do morto, começa e escorregar lentamente em direção ao piso, palma para baixo, quase como se ele tentasse se apoiar. Então Sharon  parece ficar nervosa, e se volta para os outros, apressando o passo.

DRA. SHARON:

“Depressa. Temos pouco tempo.”

Aqueron (*)

TITLE CARD:

"PARTE VI

NAS SENDAS ESCURAS: O VALE DA MORTE.

3 HORAS E 25 MINUTOS PARA O PRIMEIRO IMPACTO"

CAMINHAM NA ESCURIDÃO, AS QUATRO ALMAS, NA SUPERFÍCIE MAIS INTERNA DA ESFERA, ONDE EXISTE UM MUNDO CURVO, UMA PLANÍCIE ESCURA, COBERTA POR UMA PAISAGEM ANTES VERDEJANTE, COMO UM VASTO PARQUE, AGORA CHEIA DE GRAMA TURVA, E ÁRVORES MORTAS E RETORCIDAS VIVENDO AS CUSTAS DA LUZ ESMAECIDA QUE O NÚCLEO DA ESFERA AINDA PROJETA. A ECOSFERA INTERIOR É UM MUNDO MORIBUNDO, EM SEUS ESTERTORES, MERGULHADO EM SEMI ESCURIDÃO.

Bem no centro de tudo, acima dos astronautas, está o núcleo de energia da esfera. A primeira vista encarar aquilo foi chocante, e os homens ainda olhavam para ele com um temor respeitoso. A médica nem sequer olhava para aquilo. O núcleo é uma esfera também, bem no centro absoluto da esfera Bernal, e é de fato uma visão sombria, como que uma grande (cera de vinte metros de diâmetro) bolha de água obscura, turbulenta, dentro da qual explodiam silenciosos relâmpagos azulados. Eram estes relâmpagos que emprestavam o resto de luz àquela paisagem em eterno anoitecer

COM. DARIO REIS: (Vozes Murmurando)

“Já viu um núcleo de energia assim, Ramon?”

TEN. RAMON MEBARAK: (Vozes Murmurando)

“Nunca. Ele está em perfeito equilíbrio no centro de gravidade da Bernal. Parece uma bolha de plasma.”

Enquanto eles olham para cima, e apontam para lá suas lanternas (a luz sobe e refrata de formas estranhas e fantasmagóricas), Sharon gira o facho de sua lanterna à volta deles, uma volta completa, partindo de um afloramento de rocha próximo, passando pelos dois homens, e voltando ao afloramento, mas pouco antes de chegar passam por silhuetas humanoides na distância obscura, quase no limite da luz de sua lanterna. Assustada, ela volta rapidamente a luz, e por um segundo não vê nada, então ao voltar ao afloramento de rocha, vê as coisas odiosas sobre ele! Sedentas, horrendas!

DRA. SHARON: (Vozes Murmurando)

“Deus do céu! Nos proteja!”

COM. DARIO REIS: (Vozes Murmurando)

“O que foi, Sharon?”

DRA. SHARON:

“Nada! Acho que aquele cubo negro lá na frente é alguma unidade de controle, veja.”

Os homens veem o quadrado negro, à distância. Anima-se de terminar logo com aquilo, e sair depressa daquele mundo morto, se apressando sem mais conversar a seguir naquele rumo. Em mais alguns minutos estão de frente para o cubo, Ramon se senta em uma pedra próxima, e respira fundo várias vezes.

COM. DARIO REIS: (Vozes Murmurando)

“Ei, Ramon, está bem?”

DRA. SHARON:

“Deixe-me ver você...”

TEN. RAMON MEBARAK: (Vozes Murmurando)

“Estou tendo um pequeno ataque de pânico. Mas estou conseguindo me controlar, tudo bem. Acho que meu medo de escuridão não passou... E essas malditas vozes que não calam.”

COM. DARIO REIS: (Vozes Murmurando)

“Preciso que veja se consegue ativar esta unidade de controle.”

DRA. SHARON:

“Precisamos muito de você, Ramon.”

TEN. RAMON MEBARAK: (Vozes Murmurando)

“Tudo bem... Deixe-me ver... É um núcleo remoto de computador, quer dizer que em algum lugar lá atrás tem uma sala de controle...”

COM. DARIO REIS: (Vozes Murmurando)

“Não temos tempo de procurar. Dá para operar isso daqui?”

TEN. RAMON MEBARAK: (Vozes Murmurando)

“Sim, esta é uma unidade bem antiga, mas tem uma interface local aqui, olhe... Uma conexão padrão StormWire 2.1. Trouxe algumas, mas por azar não tenho uma 2.1 aqui. Tenho que voltar a nave e pegar um adaptador para meu PAD se conectar com isto.”

DRA. SHARON:

“Seus batimentos cardíacos estão acelerados, acho bom  não se esforçar demais.”

COM. DARIO REIS: (Vozes Murmurando)

“Ok. Eu vou. Onde estão as ferramentas que precisa?”

TEN. RAMON MEBARAK: (Vozes Murmurando)

“Tudo bem, você é mais rápido que eu... Me trás a maleta de interfaces. É pequena, e está numerada com o código INT-32, você a encontrará no armário 2 da engenharia da Abaddón.”

DRA. SHARON:

“Comandante, por favor, seja rápido. Mas não dê ouvidos ao que encontrar pela frente. Essa escuridão está mexendo com nossas percepções, não vá se perder.”

COM. DARIO REIS: (Vozes Murmurando)

“Minha preocupação com a missão é maior que o resto. Perdemos nosso técnico em explosivos, e temos cerca de 3 horas para dar um empurrão nessa esfera para longe da Tsien! Se não conseguirmos, teremos que explodir a RX7 junto com essa esfera.”

TEN. RAMON MEBARAK: (Vozes Murmurando)

“Concordo, é a única maneira de acabar com isso sem um especialista aqui.”

COM. DARIO REIS: (Vozes Murmurando)

“Programa seu PAD para me mostrar o caminho de volta, e me passe ele. Vou indo, esperem aqui.”

E Dario começa a correr pela planície curva, seguindo o caminho indicado pelo PAD em sua mão. Mebarak, ainda sentado na pedra, e Sharon, silenciosa e vigilante, em pé ao lado dele, ficam olhando o comandante desaparecer e ser engolido pela escuridão coleante.Durante o trajeto, Dario é assombrado por vultos e sussurros, mas prossegue, aparentemente inabalável. Aos poucos ele vai cedendo, e parece ter dificuldades de respirar. A energia de sua lanterna está cada vez mais fraca, e é com ela já quase se apagando, e com a sensação de que a escuridão o está tentando agarrar, que o comandante Dario percorre os corredores.

Aqueron (*)

TITLE CARD:

"PARTE VII

NAS SENDAS ESCURAS: LÁZARO.

2 HORAS E 48 MINUTOS PARA O PRIMEIRO IMPACTO"

OS CORREDORES PARECEM NOVAMENTE A GARGANTA ASQUEROSA DE UM MONSTRO, OU TALVEZ O INTERIOR DE UMA IMENSA SERPENTE QUE OS ENGOLIU. A VOLTA, PELAS PAREDES, HORRORES SEM NOME SE LANÇAM SOBRE O ASTRONAUTA, PROTEGIDO POR UMA RÉSTIA DE LUZ.

O comandante Dario se arrasta pelos corredores, se esgueirando entre escuridões pegajosas e coleantes, arfando sem ar, e suando copiosamente, tentando manter-se concentrado em chegar a nave. Ele chegou a sua nave, pegou a maleta que seu engenheiro precisava, e colocou nova bateria na lanterna, mas parece que a própria escuridão estava sugando a energia dela, que se exauria rapidamente. Dario sacode a lanterna e apressa o passo. Mas subitamente o comandante congela. Sua lanterna se paga lentamente diante de seus olhos aterrorizados, e as vozes horrendas aumentam tremendamente, e as criaturas da sombra começam a avançar sobre ele, cuja respiração está cada vez mais acelerada. Súbito, quando ele percebe que a luz vai se apagar, e que os monstros vão devora-lo no esquecimento da noite eterna das entranhas da esfera, ele fecha os olhos, e grita... Mas nada acontece. Ele abre lentamente os olhos, e percebe que está iluminado pelo foco de uma outra lanterna. Alguém veio em seu encontro.

COM. DARIO REIS: (Vozes Murmurando)

“Ramon?”

COM. TALES LUCANO: (Vozes Murmurando)

“Comandante! Dario! Dario! Graças a Deus!”

Foi subitamente que Dario viu que quem segurava a lanterna era um homem morto, um homem morto que o agarrava pela manga do traje, e parecia em desespero.

COM. DARIO REIS: (Vozes Murmurando)

“Porra! Porra! Porra, me solta, me solta, meu Deus! Meu Deus!”

COM. TALES LUCANO: (Vozes Murmurando)

“Graças a Deus! Eu encontrei você! Estava perdido na escuridão!”

COM. DARIO REIS: (Vozes Murmurando)

“Sai de perto de mim! Me solta! Você ta morto!! Você morreu!”

COM. TALES LUCANO: (Vozes Murmurando)

“Não! Não! Não! Olhe, eu sou de carne e osso! Toque meu braço, porra! Estou vivo! Estou vivo!”

Tales agarrava a mão de Dario, que ameaçava soca-lo, e fazia o comandante da Abaddón tocar seu braço e seu rosto. Tales estava em frenesi, e Dario quase tendo um colapso nervoso, mas aos poucos o comandante Reis foi se controlando, então agarrou os ombros de Tales, dizendo:

COM. DARIO REIS: (Vozes Murmurando)

“Eu vi você morrer. Sharon disse que morreu!”

COM. TALES LUCANO: (Vozes Murmurando)

“Estou vivo! Essa mulher que vocês trouxeram está tentando enganar todo mundo! Estou vivo! Ela nem deve ser médica mesmo...”

COM. DARIO REIS: (Vozes Murmurando)

“Ei! Calma! Como assim ‘nós trouxemos’? Sharon veio com você!”

COM. TALES LUCANO: (Vozes Murmurando)

“Merda nenhuma! Essa maluca estava aqui quando cheguei!”

Dario ficou mudo. Por um longo tempo ficou agarrado à lanterna e ao ombro do homem na sua frente, sólido, real. Reis tentou se lembrar da chegada da mulher, e sua expressão foi ficando mais e mais pálida conforme ele lembrava de que achou estranho que a mulher chegasse tão rápido a bordo, pouco depois de a outra nave chegar. Foi rápido demais. Impossível. Ela estava do lado de fora da porta o tempo todo, e quando Tales chegou ela já estava dentro da esfera, por isso ele pensou que ela havia vindo na Abbadón.

COM. DARIO REIS: (Vozes Murmurando)

“Merda! Ramon está sozinho com ela, ela pode pegar ele pelas costas, e acabar com a esfera!”

Dario tomou a lanterna de Tales e correu, desesperadamente pelo túnel escuro. Atrás dele Tales tentava o acompanhar, correndo também, e berrando:

COM. TALES LUCANO: (Vozes Murmurando)

“Não! Vamos embora! Me leve para fora! Me dá essa luz! Ele está morto, teu engenheiro já ta morto! Filha da puta!!! Volta!”

Dario correu o máximo que pode, por todo o caminho de volta, as vezes ouvindo Tales xingando ele atrás de si, as vezes ouvindo gritos de terror do comandante da RX7, mas quando se virava, via o homem vindo correndo atrás de si, e continuava em frente.

Aqueron (*)

TITLE CARD:

"PARTE VIII

NAS SENDAS ESCURAS: A FERIDA.

1 HORAS E 08 MINUTOS PARA O PRIMEIRO IMPACTO"

O NÚCLEO DA ESFERA ARDIA EM UM PULSAR ASSOMBRADO E ENSANGUENTADO, PINTANDO A PLANÍCIE DE TONS SANGRENTOS. ONDE A LUZ SANGRENTA TOCAVA, BOTAVAM SOMBRAS, QUE DEPOIS SE CONVERTIAM EM PESSOAS FERIDAS, CORRENDO, ENCENANDO O MOMENTO DE SUAS MORTES HÁ TEMPOS, QUANDO A ESFERA SE PERDEU PELA PRIMEIRA VEZ.

Foi quando “eles” começaram a agarra-lo. Dario estava percorrendo a planície, quando percebeu que o núcleo de energia acima dele se incandesceu com uma luz mortiça, venosa  e fantasmagórica. A planície então estava repleta de pessoas. Havia gente correndo apavorada por toda parte, e alguns muito feridos e descarnados. Havia fogo, havia explosões. Mas não havia um único som a não ser um pulsar surdo e assustador que vinha do núcleo de energia lá em cima. Por um momento, Dario divisa o cubo negro, e vê a silhueta de Ramon trabalhando nele. O comandante então perde o senso de direção, e começa a ser contagiado pelo pânico das almas perdidas ali, e começa a gritar, então alguém toca seu ombro, ele se vira, pronto para bater com a lanterna:

COM. DARIO REIS: (Vozes Gritando! Gritando de Horror! De Dor! De Pavor!!)

“Ahhhhhhhhhhhhhhhhh!!!!”

Mas dedos suaves encostam-se a seus lábios. Sharon, no meio da turba irada de pessoas morrendo, segura o braço de Dario, que hesita em bater nela. Então a médica diz:

SHARON:

“Logo você estará totalmente louco. Mas ainda é um homem prático e sabe que não tem nada a perder... Confie em mim, e feche os olhos, vou te ajudar a não ver essa gente por um momento.”

As pessoas estão sujando Dario com sangue. Ele primeiro faz uma expressão furiosa, e então a escuridão começa a engolfá-lo, e seus olhos vão mudando, de fúria a terror, e sua boca se contorce em um esgar, então ele pisca, e sua expressão é a de um menino morto de medo quando ele vai fechando lentamente e forçosamente os olhos...

DRA. SHARON:

“Abra os olhos... Vamos, abra os olhos...”

Ele abre os olhos, e ouve o mais tenebroso silêncio, e ainda assim fica aliviado por não ouvir mais os que estavam morrendo. Lágrimas escorriam de seus olhos, então ele empurra a mulher para longe de si, e percebe que está ao lado de Ramon, que trabalha no cubo negro. Pouco mais à frente, Tales Lucano está agachado no chão, chorando, balbuciando algo. Não há mais ninguém na planície, apenas o núcleo pulsando, incandescendo em vermelho. Ramon olha para Dario, pega das mãos trêmulas do comandante a maleta, prepara seu PAD, e enquanto aciona a interface, ele diz:

TEN. RAMON MEBARAK:

“Vou desativar isso, comandante. Essa coisa não é um núcleo de energia. É um ferimento, um corte no espaço. Tem que ser cauterizado!”

SHARON:

“O núcleo vai disparar uma rajada de plasma, só que desta vez o engenheiro aqui vai calcular a força do pulso, para fechar a ferida para sempre.”

COM. DARIO REIS:

“Ramon, se essa coisa bater na Tsien, muito vão morrer...”

TEN. RAMON MEBARAK:

“Se o núcleo se abrir totalmente, ele vai atravessar a Tsien, e vai cair na Terra, e toda a superfície do planeta vai ficar igual a esta planície, um gigantesco limbo de gente presa entre duas dimensões, eternamente morrendo.”

SHARON:

“Não há saída, essa ferida purulenta tem que ser fechada aqui.”

com uma raiva indisfarçável no olhar, o comandante Reis fitou Sharon, que ficou impassível diante da ira do homem. Então o primeiro imenso lampejo branco do núcleo iluminou toda a planície por um segundo, e todos sentiram a alma queimar, e gritaram. Dario sentiu-se sendo erguido por alguém, e percebeu ser seu amigo, Ramon, que dizia, em uma voz longínqua, pois parecia que a cada pulso de luz branca, a própria luz abafava o som:

TEN. RAMON MEBARAK:

“Vamos! Vamos embora! Fizemos tudo que pudemos!”

E desataram a correr, todos, correndo como se estivessem sendo seguidos pelo próprio fogo do inferno. Então um tremendo lampejo de luz torna tudo branco.

Aqueron (*)

TITLE CARD:

"PARTE IX

NAS SENDAS ESCURAS: A VERDADE DERRADEIRA..."

A INTENSA LUZ PARECEU PREENCHER E DESINFECCIONAR CADA MEANDRO DA ESFERA, PREENCHENDO E QUEIMANDO A ESCURIDÃO CHEIA DE PESADELOS. AGORA FINALMENTE A LUZ DIMINUÍA, E OS ASTRONAUTAS EM FUGA CHEGAVAM, DESESPERADOS, AO ÚLTIMO COMPARTIMENTO ANTES DA SALA DA ESCOTILHA QUE LEVAVA PARA FORA DA ESFERA.

Eles precisavam passar daquela porta, precisavam entrar ali, vestir seus trajes, e sair. Nem tentaram chegar ao anel de atracação, ele estava longe. Sairiam o mais rápido possível daquela esfera, e tentariam chegar a nave por fora. Até ficar a deriva no espaço era melhor que morrer ali. Mas de algum modo a última porta antes dos trajes e da liberdade, estava lacrada, e de longe, de trás deles, um terrível rumor, e um ranger terrível de metal, os impelia a fugir antes que tudo fosse destruído, ainda assim, não conseguiam abrir a penúltima escotilha antes do espaço e da liberdade.

COM. DARIO REIS:

“Eu não fechei essa merda assim! Isso parece que foi soldado!”

SHARON:

“Calma, há uma outra saída, e eu vou mostrá-la a vocês.”

TEN. RAMON MEBARAK:

“Meu Deus! Olha a escotilha lá embaixo! Onde foram parar as estrelas?!”

COM. TALES LUCANO:

“Não! Eu não vou morrer aqui! Eu não vou morrer aqui!”

SHARON:

“Não precisa mais se preocupar com isso. Assim que ficarem calmos, vão entender.”

COM. DARIO REIS:

“Cala essa maldita boca, e ajuda a abrir essa escotilha!”

SHARON:

“Ela não pode mais ser aberta, Dario. Ela não dá para lugar algum. Vou mostra a saída...”

Aqueron (*)

TITLE CARD:

"PARTE X

NAS SENDAS ESCURAS: DEIXAI AQUI, Ó VOZ QUE ENTRAIS..."

A INTENSA LUZ DO NÚCLEO JÁ SE APAGA, E A PLANÍCIE A VOLTA DO NÚCLEO DE CONTROLE COMEÇA A VOLTAR A ESCURIDÃO, QUE A ENGOLIA, COMO SE ELA, A PLANÍCIE, E TUDO MAIS, JAMAIS TIVESSEM EXISTIDO.

Enquanto as últimas réstias de luz se esgotam, percebemos que tudo parece estar envolto em uma luz mais suave, como a luz do luar, e que a planície não está de todo deserta, existem três homens ali, estendidos no chão, pegos pelas costas pela tremenda rajada de plasma do núcleo, os homens jazem, mortos, Dario, Ramon, e Tales. Mas ainda assim, nossa visão deste mundo moribundo passeia pelos corredores, perfazendo o caminho agora de fuga, e passa pelas almas dos homens mortos, que tentam, desesperadamente e em vão, abrir uma escotilha que jamais os deixará sair. Atravessamos a porta de aço, e vemos os rostos desesperados das almas que estão sendo levadas da vida no visor da escotilha trancada. Tudo está ficando escuro, enquanto passamos pelas silhuetas dos trajes espaciais. Então mergulhamos em direção ao chão, e atravessamos a última escotilha, enquanto os rostos na janelinha lá atrás se perdem na escuridão, e estamos fora da esfera, e nos distanciando dela, longe, cada vez mais longe.

CONTROLE DA MISSÃO DE BUSCA E SALVAMENTO:

“Abaddón RX4, ainda não recebemos seus relatórios. Estamos detectando uma perda considerável de massa da esfera... O que está acontecendo por aí?”

Lentamente a esfera mergulha de novo no esquecimento, levando consigo os homens que foram escolhidos por alguém do outro lado para fechar este caminho entre os mundos. Lentamente a esfera vai se desmaterializando.

CONTROLE DA MISSÃO DE BUSCA E SALVAMENTO:

“Abaddón RX4! Onde vocês estão? Não temos contato de radar! Nós perdemos eles...”

FIM

Curtiu? Então divulgue e compartilhe com todos que você acha que vão curtir também! Obrigado. E se quiser, em futuro próximo, concorrer a brindes e livros grátis, por favor assine minha lista de e-mails.

Licença Creative Commons

Aqueron (Roteiro de Telefilme) de Wagner RMS está licenciado com uma Licença Creative Commons - Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional. Podem estar disponíveis autorizações adicionais às concedidas no âmbito desta licença em contato.c7i@gmail.com.


Tags
11 years ago

O DESTRUIDOR DE MUNDOS

Mais uma degustação de um livro em andamento, desta vez o Livro Zero, marco inicial da minha série Código 7 Infinidade. Para aqueles que curtem uma cientificamente bem embasada (ao menos me esforcei para isso) e dinâmica "space opera", com certo tempero de fantasia paranormal (mas que no decorrer da série se descobre não ser tão surreal assim), então este é um convite para você embarcar comigo em uma jornada eletrizante pelo Universo! Venha:

"Sabíamos que o mundo não mais seria o mesmo. Algumas pessoas riram, algumas pessoas choraram, a maioria ficou em silêncio. Recordei-me de uma passagem das escrituras hindus, o Bhagavad-Gita. Vishnu está a tentar persuadir Arjuna de que deve fazer o seu dever, e para o impressionar assume a sua forma de quatro braços e diz, 'Eu tornei-me a Morte, o destruidor de mundos.'  Suponho que todos nós pensamos isso, de uma maneira ou de outra." — Robert Oppenheimer (Sobre a experiência "Trinity", o primeiro teste nuclear da História).

O Vigilante do Abismo

[MENSAGEM DE RÁDIO INICIADA - ONLINE]

18/Dez/2.143 : 23:15 Hora Padrão :

Missão: 01387 – Nave de Pesquisa e Resgate ESA VTX 71 Jacques-Yves Cousteau – Órbita de Júpiter.

Objetivo: localizar e, se necessário, abordar veículo sem registro oficial, que emite sinal de uma posição extremamente baixa na órbita de Júpiter.

Tripulação: Primeira Comandante Valkiria Valentina Cristoforetti, Segundo Comandante Coronel Marcus Alexander Stone, Piloto Tenente-Coronel Vladimir Vladimirovitch Plushenko, Engenheiro de Voo Trajano Stone Cristoforetti, Especialista de Missão (Logística, Exploração e Resgate) Major Sylvia McNamara, Especialista de Missão (Médica e Engenheira de Software) Doutora Jussara Maria Müller.

Situação Atual: em contato com o objeto estacionado na alta atmosfera do planeta Júpiter, ponto onde foi identificada a origem do sinal não reconhecido, recebido seis semanas atrás. Emitindo relatório em retrospecto mais o status atual da missão, pela Comandante Cristoforetti, a seguir.

Assinatura Criptográfica: Mensagem Oficial - Secreta - Emergência - CEI - W897234784329HEIU34309 - Sub-rotina IA de Acompanhamento Laterza-Orwell.

Segue Mensagem de Áudio: Há seis semanas o Consórcio Espacial Internacional, através das antenas do Cinturão de Asteroides pertencentes à Companhia Mineradora Himmels Polizei Adventures, começou a receber um sinal, provavelmente um radiofarol-de-emergência, de um veículo não registrado, posicionado em órbita extremamente baixa de Júpiter. A Cousteau foi imediatamente deslocada para prestar socorro, mas mesmo sendo os mais próximos, chegamos aqui apenas há cinco dias. O que encontramos foi perturbador. A fonte do sinal, uma imensa estrutura, está no centro do Olho de Júpiter, acessível através de um canal de calmaria no vasto furacão que, nós acreditamos, é gerado e mantido pela própria estrutura. Não pudemos compreender de onde ela veio, nem como se instalou. Cogitamos algumas teorias, e uma delas, baseada no contato sensorial inexplicável entre esse lugar e o Coronel Stone quando da segunda abordagem, feita ontem, é de que o Vigilante do Abismo, codinome que demos a esta estrutura... Sempre esteve lá... Desde os primórdios do nosso Sistema Solar. O sinal que captamos parece estar programado para se repetir a cada... Um milhão de anos, é nossa estimativa... Não compreendemos como a estrutura se mantém, mas há um ar de deterioração aqui, sem dúvida, apesar da presença de inúmeros autômatos de formas as mais estranhas, muitos dos quais parecem fazer a manutenção do lugar. Outra informação importante, os instrumentos de bordo do Vigilante parecem indicar, graficamente, que um outro sinal precedeu o radiofarol que captamos, e este sinal é disparado para fora do Sistema Solar. Nossas sondas automáticas confirmaram que este gigantesco aparelho gera, lá embaixo, na sua base, uma espécie de portal dimensional que permite viagens interestelares, pois as sondas voltaram com fotos de constelações cujas análises de paralaxe (1) indicam uma alteração de perspectiva de vários anos-luz... Atenção, aguardem, o portal estelar de Júpiter está se abrindo novamente, se expandindo, mas que...

[MENSAGEM DE RÁDIO INTERROMPIDA - ENDOFLINE]

Um Pai de Verdade

Quarenta e oito dias depois do encontro com o portal estelar do Vigilante do Abismo, o corpo do Coronel Marcus Alexander Stone estava prestes a se dilacerar, e ele sentia cada fibra de seus músculos estendida ao máximo, prestes a romper.

Certamente seu traje pressurizado se romperia antes, mas não tinha como fazer outra coisa, então Marcus rilhava os dentes, respirando entre eles, gotas de saliva respingando na parte de dentro do seu capacete, enquanto com a mão esquerda o homem se agarrava ao batente de uma das escotilhas da Cousteau, que flutuava e se despedaçava em órbita daquele moribundo planeta alienígena. Com a outra mão Stone segurava as mãos do rapaz que se debatia no vácuo, sendo sugado pela exótica força de convecção do portal estelar que o próprio jovem havia aberto, que sugava átomo a átomo das proximidades, arremessando-os para longe, para evitar que o monstro gigantesco e hediondo que estava se materializando através do portal se solidificasse em torno de outros corpos. Não havia como ambos os homens, o mais velho e o mais jovem, saírem vivos dali. Mas também não havia como Marcus ordenar que seu coração e seus músculos largassem seu filho, não tinha como abandonar Trajano! Não podia! Seu filho! O destruidor de mundos, o conjurador do monstro ancestral e assassino que chegava através do portal estelar, e que seria o flagelo de bilhões de vidas no planeta verdejante lá embaixo! Ainda assim um pai, um pai de verdade, não pode, não consegue soltar a mão de um filho que espuma, insano, raivoso, feroz, mas que ainda é seu filho.

— Trajano! — Vociferou em desespero Marcus Stone, pelo rádio. — Filho! Para isso! Para!

— Vão morrer, pai! — Urrou o jovem de volta. — Todos esses monstros vão morrer!

Repleto de Vida

Muito antes deste momento derradeiro de pai e filho, aos seis minutos, vinte e três segundos, e oito décimos depois do encontro com o portal estelar do Vigilante do Abismo, os alarmes de bordo dispararam em uníssono, e ecoaram por toda a nave, pois por uma fração de segundo seus sensores ativos indicaram que tudo na ESA VTX 71 Jacques-Yves Cousteau parou de funcionar. Foi somente por um instante, mas os alarmes não queriam saber, e berravam insistentes. O mesmo processo, ocorrido quando a nave atravessou o portal estelar de Júpiter, teve o efeito, sobre os nervos dos tripulantes, de um breve mas excruciante momento de dor.

— O quê?! O quê foi!!!... O que foi isso?? — Balbuciava, desorientada mas se esforçando para ficar em pé, Sylvia McNamara, a jovem e normalmente radiante especialista em resgates no vácuo. Seus longos e lisos cabelos castanhos estavam um tanto desgrenhados, e sua face de pele clara estava ainda mais pálida. Ela já salvara vidas inúmeras vezes em gravidade zero, e se orgulhava de nunca ter passado mal e sempre ter mantido o controle sob quaisquer que fossem as forças centrífugas, mas naquele instante a sala de comando da Cousteau girava loucamente. E, pelo espetáculo que podia ser visto através do grande monitor panorâmico frontal, isso ocorria literalmente, pois um campo de estrelas girava, alternando com a superfície verdejante de um planeta, e de volta às estrelas, sem parar. Sylvia teve que se conter para não pôr tudo do estômago para fora, virando o rosto para não mais ver o monitor.

— Todos estavam a bordo? Todo mundo a bordo? — Perguntava sem parar a Comandante Cristoforetti, falando a um minúsculo microfone cuja haste se estendia de um auricular posicionado em sua orelha direita. Ela estava sentada e presa pelos cintos de segurança em sua cadeira na sala de comando. — Plushenko! Plushenko! Perdemos estabilidade!

— Estou a caminho! — Veio a voz, decidida e firme, do piloto pelo sistema de comunicação, cujo tom indicava que ele estava correndo o melhor que podia em gravidade zero.

Por toda a cabine de comando objetos soltos flutuavam, ricocheteando de quando em vez, ou nas mulheres ou nas paredes e instrumentos.

— Sylvia! — Chamou a Comandante. — Tudo bem?

— Sim, comandante. — Disse McNamara, forçando um amplo sorriso para tranquilizar a outra, assim que entrou no campo de visão de Cristoforetti, cuja cadeira a mantinha apontada para a proa da nave, onde estava o monitor panorâmico. — Só com diversos arranhões, e os que doem mais estão no orgulho! Eu estava sem os cintos.

— Syl, por favor veja o que houve com o cilindro.

McNamara já havia se adiantado, eficiente como sempre, e, verificando um determinado painel, respondeu quase de pronto:

— Está reiniciando, desarmou. Assim que restabelecermos o momentum (2) da nave, a gravidade simulada deve voltar.

Valkiria Valentina Cristoforetti, com sua testa morena enrugada de tensão contida, e com seus grandes olhos escuros arregalados de atenção, mexia nos controles direcionais da Cousteau, tentando adiantar o serviço do piloto, e repetia no microfone:

— Todo mundo a bordo? Reportem! Todos a bordo? Ninguém em extra-veicular, pelo amor de Deus? Parece que mudamos de posição no espaço, não vejo o Vigilante... Nem... Júpiter...

O primeiro a chegar foi Vladimir Vladimirovitch Plushenko, que saltou para a cadeira do piloto como quem veste a melhor e mais querida roupa. Enquanto Trajano, Stone e Jussara se juntavam à eles, Vladimir conseguiu, aos poucos, reequilibrar a nave, usando com extrema perícia os jatos de manobra para ir influenciando o giro da Cousteau, até estabilizá-la. Instantes depois disso um solavanco indicou que o cilindro rotatório, que simulava por força centrífuga a gravidade, estava voltando a funcionar, e dez minutos depois todos conseguiam andar e se mover normalmente de novo.

— Muito bem, piloto. Agora vamos restaurar todos os sistemas! — Ordenou a comandante.

Trabalhavam juntos naquela nave há quase três anos. Eram uma família, e também eram como soldados muito bem treinados, pois no vazio do espaço, se um não cuida do outro, e se não são capazes de trabalhar com afinco e precisão sob quaisquer circunstâncias, as pessoas não sobrevivem muito tempo. Passaram então a hora seguinte verificando e desarmando um a um os alarmes que haviam sido disparados, de modo a terem certeza da integridade do seu pequenino mundo chamado Cousteau. Quando finalmente tudo havia voltado a relativa normalidade, e Jussara havia atestado que todos estavam de fato bem, sem ferimentos graves ou concussões, eles todos se acumularam diante do monitor panorâmico frontal da Cousteau, e olharam, fascinados, um planeta cheio de vida, coberto por amplas florestas, e grandes trechos de água, e que, visivelmente, não era a Terra.

Perigeu

Um dia, dezesseis horas e vinte e nove minutos depois do encontro com o portal estelar do Vigilante do Abismo, os alarmes de colisão da nave terrestre disparavam.

Estavam sobrevoando o planeta de uma longa órbita desde que chegaram, captando amplo escape de sinais de rádio vindos de terra, no entanto nada era passível de ser compreendido, embora as VRPs (3) de bordo não tenham parado de trabalhar um segundo em cima desses dados, e já tivessem conseguido identificar que eram sinais digitais, em essência parecidos com os nossos, o conteúdo em si ainda era ininteligível. Diversos artefatos em órbita, alguns até maiores que a Cousteau, emanando e refletindo esses  sinais, indicavam uma civilização tecnológica. Mas os telescópios, mesmo os de mais longo alcance, não mostravam na superfície do planeta grandes cidades ou estruturas viárias. Nada, a não ser vestígios muito pouco nítidos do estruturas que poderiam ser pequenas aglomerações de casas ou construções de algum tipo, como pequeninas aldeias. Quando muito alguns pratos de antenas, parecidas com radiotelescópios (4) de porte médio, apareciam em montanhas que emergiam, aqui e ali, em meio a exuberante selva que cobria aquele belo e exótico mundo.

Havia ficado mais que evidente que estavam num outro sistema solar, visto que o planeta verdejante ali embaixo não poderia existir em lugar algum das cercanias da Terra, e que suas observações astronômicas não identificaram nenhuma constelação conhecida, mas mostraram que apesar de parecida, a estrela que orbitavam não era espectralmente (5) idêntica ao nosso Sol, e tudo indicava ser cercada por seis planetas. A Cousteau estava orbitando o quarto, que era cercado por sua vez por três luas, cada uma com cerca de um terço até a metade do tamanho da Lua da Terra.

Visto então que não havia para onde recuar, e que seus suprimentos vitais não durariam para sempre, e estavam mesmo chegando ao limite mínimo, por mais que estivessem bastante nervosos com a possibilidade de um primeiro contato com alienígenas, todos resolveram, após uma tensa reunião onde a Comandante quis a opinião de cada um dos tripulantes, se aproximar mais, entrando numa órbita elíptica tal que os levaria a, no ponto mais próximo ao planeta, passar pouco acima dos satélites artificiais daquele mundo. Faltavam algumas dezenas de quilômetros para atingirem esse ponto de máxima proximidade, e estavam todos com trajes pressurizados mas não lacrados, rostos à mostra, e a postos. Valkíria, Plushenko, Stone e Sylvia na cabine de comando, os outros no observatório a meia nau, prontos para sobrevoar, analisar, filmar e fotografar o novo mundo e seus satélites, quando o alarme de colisão começou a tocar! A voz monótona de uma das VRPs não autoconsciente dizendo sem parar, até ser desligada, "Colisão! Alerta! Colisão! Tomar medidas evasivas! Colisão! Alerta!".

— O que é, Vladimir? — quis saber a Comandante Valkíria, de sua cadeira no centro da cabine, e sabendo que o alarme só dispararia no caso de uma iminente catástrofe. Algo grande estava vindo.

— Não é visível ainda, e meus sensores não identificam nenhum radiofarol.

— Sylvia?

— O radar de proa disparou o alarme. Ele indica que algo vem da superfície em alta velocidade, — Respondeu prontamente McNamara — e está em trajetória balística de interceptação, deve nos atingir em cheio no nosso perigeu (6). Míssil? Outro ônibus espacial deles por acaso em nossa trajetória?

— Piloto.

— Alterando a rota. Recalculando trajetória… — Vladimir Vladimirovitch levantava as espessas e escuras sobrancelhas, e como sempre, ficou com o rosto pálido ligeiramente ruborizado quando se concentrava no monitor do seu computador — Sylvia, me passa as atuais posições dos satélites artificiais. Não posso desviar de uma coisa e esbarrar em outra.

— Feito.

— Pronto, vamos passar a cerca de vinte quilômetros do tal míssil.  — afirmou o piloto, enquanto todos ouviam o rumor dos propulsores de manobra alterando o curso da nave.

— Não vamos não, — retorquiu McNamara — o míssil alterou a rota também, e voltou a mirar em nós. Colisão em doze minutos, trinta e três segundos e seis décimos.

— Equipe do observatório. — Chamou o Segundo Comandante Marcus Stone, pelo intercomunicador  — Alguém conseguiu definir o que é isso que vem em nossa direção?

— Algum tipo de foguete! Tem a forma de um grande míssil mesmo. — Respondeu Trajano de volta. — Os filhos da puta estão atirando em nós!

— Piloto.  —  Chamou a Comandante Valkíria.

— Vou fazer o possível.

— Todos prontos para eventual colisão e despressurização! — Disse, quase gritando, Valkíria, também ao intercomunicador, para todos ouvirem.

— Vladimir, use os satélites deles de escudo! — Sugeriu Marcus. Ao que recebeu um tenso e reprovador olhar de sua esposa, a Comandante. — Prefere morrer aqui, Val?

— Não, piloto siga a ordem do Segundo Comandante!

— Sim! Desligando cilindro rotatório, assumindo controle manual total.

Quase que imediatamente, enquanto o cilindro que simulava gravidade ainda estava finalizando sua imobilização, e a tripulação mal começava a perder a sensação de peso, a nave terrestre guinou. Foguetes de manobra cuspindo fogo intensamente, seus ocupantes pressionados contra seus assentos abruptamente, e os propulsores principais incandescendo num rubro azulado radiante. Por dentro do veículo toda a sua estrutura guinchando, chegando próxima de seu ponto máximo de estresse, símbolos de alerta espocando nos painéis de controle.

— Vladimir!... Vladimir!... Vladimiiiir!... — Repetia a Comandante, sem conseguir se conter, enquanto uma das grandes estações orbitais alienígenas assomava, crescendo subitamente no monitor panorâmico frontal da cabine de comando. Nem mesmo a experiência de Valkíria, que já voava há anos com o russo temerário, lhe fez acreditar que não bateriam em cheio. Mas Vladimir Vladimirovitch Plushenko tinha poucos rivais na pilotagem. Passaram, talvez, há pouco mais de cinco metros abaixo da estação extraterrestre, chamuscando aquela estrutura com os jatos da Cousteau. Mas o visual, depois dessa manobra, não tranquilizou ninguém. A nave da Terra mergulhava, como um bólido, bem dentro do setor da órbita daquele planeta mais apinhado de satélites e de tráfego.

— Syl, e o míssil? — Quis saber Valkiria, agarrando-se a cadeira de comando, onde já estava presa por seus cintos.

— Ainda mirando em nós. Ele tem uma manobrabilidade provavelmente superior a nossa, mesmo com Vlad pilotando! Sete minutos para impacto!

— Marcus, podemos lançar algo em nosso rastro?

— Não, Comandante, essa nave não foi feita pra isso, não temos o que ejetar e se abrirmos alguma comporta explodimos. Vladimir, outra sugestão, entre naquela zona de tráfego intenso, e reduza!

— O quê?! — Disse o piloto, incrédulo no que seu Segundo Comandante lhe dizia. Vladimir podia ver o míssil agora, cada vez mais próximo.

— Não vamos escapar daquilo! — Stone gritava — Isso aqui não é um caça! Com um caça eu aposto que você escapava de um míssil, amigo, mas com isso aqui, não! Para no meio deles e reza pra eles não matarem sua própria gente!

Olhando de um homem para o outro, a Comandante suspirou,  tensa, e disse:

— Cumpra, Vlad!

A Jacques-Yves Cousteau acionou com uma pequena explosão seus retrofoguetes, desacelerendo o mais rápido que pôde, por cerca de dois minutos sua tripulação foi submetida a intensa força inercial, alguns quase desmaiando. A nave terrestre mergulhou então no maior fluxo de veículos que pareciam transportar coisas ou pessoas ou ambas do solo lá embaixo para as estações orbitais, e entre estas. As navetas de transporte alienígenas, usando claramente foguetes de manobra também, se acomodaram aos poucos à presença da Cousteau, o fluxo era tão intenso ali que se saíssem muito de suas trajetórias, seria o caos. Um som melódico como um vibrante e cada vez mais intenso sino, cujos repiques aconteciam com cada vez menos tempo entre eles, plaaam, plaaam, plaaam, indicava  a aproximação fatal do míssil.

— Lá vem ele. — Disse a Major Sylvia McNamara, contendo uma risadinha nervosa. Sylvia sempre tinha vontade de rir quando estava ansiosa, fazia parte de seu jeito jovial e quase sempre radiante. Apesar de amar a jovem quase como uma filha, a Comandante não conseguia evitar de se irritar com esse tique nervoso de McNamara.

O radar repicava: plaaam!... Plaaam!

— Atenção. Preparem-se para o impacto! Selem os trajes! — Ordenou Valkíria ao intercomunicador, enquanto, assim como todo resto da tripulação, fechava o visor do capacete de seu traje pressurizado, embora ele fosse fechar sozinho ao menor sinal de despressurização, e prendia o tanque de oxigenação no encaixe frontal de seu traje, para poder continuar sentada e presa em sua cadeira. — Rádios dos trajes ok?

Um a um os tripulantes confirmaram, rapidamente, que estavam com trajes fechados e que, portanto, estavam ouvindo por seus rádios individuais a voz da Primeira Comandante. Todos em contato.

Plaaam!... Plaaam! Plaaam!

— O diabo do míssil é enorme… — Sussurou Sylvia, mas todos, evidentemente, puderam ouvir. Percebendo isso ela completou: — É quase o triplo da Cousteau. Nuclear?

Plaaam! Plaaam! Plaaam! Plaaam!

Evidentemente, nos últimos instantes, Vladimir Vladimirovitch girou a nave, numa tentativa de minimizar a área de impacto e os danos, deixando os tanques de combustível no ventre da nave do outro lado, e inclinando a forte blindagem dorsal dos motores contra o míssil.

PlaaamPlaaamPlaaamPlaaamPlaaam!

— Não vão parar… Tem um monte de gente deles em torno de nós, e eles não vão parar... — Disse o piloto enquanto fazia a manobra. A tela panorâmica da ponte de comando ainda mostrando a visão da câmera externa na direção de onde vinha o míssil, um monstro cavalgando chamas intensamente rubras, como alguma máquina apocalíptica medonha que se agigantava, agigantava, agigantava, um pequeno sol prestes a surgir na órbita daquele planeta, nada poderia impedir isso.

A comandante fechou os olhos, dolorosamente impotente. Sylvia ria baixinho, em algum lugar. Plushenko murmurava algo em russo. Stone jazia em profundo silêncio. Lá do observatório, era chegada também a hora em que nada mais soava tolo, e Jussara disse que sentiria falta de todos e Trajano gritou algo sobre amar.

Plaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaammmmmmmmm!!! Valkíria esticou a mão e agarrou a de Marcus. E foram todos engolidos por um imenso clarão na silenciosa e fantasmagórica explosão no espaço.

CONTINUA...

GANHE O LIVRO: Gostou desta degustação? Quer ganhar eBook do Livro Zero completo logo que ele estiver pronto? Então inscreva-se clicando aqui.

Agora, por favor, deixe o seu comentário aqui no final desta página, depois das notas de rodapé abaixo, sua opinião é FUNDAMENTAL, e vai me ajudar e a escrever mais e melhor para você!

_________________

Notas de Rodapé:

(1) Paralaxe: é utilizada, na astronomia, para definir a diferença na posição aparente de um objeto visto por observadores que se encontram em locais diferenciados. A palavra Paralaxe tem sua origem no idioma grego e significa alteração. Na astronomia, o termo corresponde à alteração da posição angular que ocorre entre dois pontos estacionários relativos quando vistos por um observador em movimento. Isto significa que ocorre uma aparente alteração em relação à posição de um objeto quando um observador varia o fundo de observação. Uma utilização prática da Paralaxe na astronomia é referente ao cálculo feito para medir a distância das estrelas tendo como base o movimento da Terra em sua órbita, é a chamada paralaxe estrelar. Já a paralaxe anual tem sua definição a partir da diferença de posição de uma estrela vista a partir do Sol e a partir da Terra. É importante para os cálculos que determinam distância em anos-luz. Calcula-se então o parsec que corresponde à distância para a qual a paralaxe anual é de um segundo de arco, também chamado arcseg. Cada parsec equivale a 3,6 anos-luz. É importante destacar que não é possível ver uma estrela a partir do Sol, em função disso, a observação é feita a partir de dois pontos opostos da órbita do planeta Terra e o resultado obtido é dividido por dois. A distância que um objeto possui em parsecs pode ser calculada do inverso de sua paralaxe. O resultado da paralaxe é obtido através da divisão da unidade astronômica, que corresponde à distância média da Terra ao Sol, pela distância até a estrela desejada. O valor encontrado é multiplicado por 180 e pelo resultado da divisão de 3600 por PI. O resultado dessa conta é dado em arcseg. (Dicionário Informal: http://www.dicionarioinformal.com.br/paralaxe/)

(2) Momentum: Em Física significa o produto da massa pela velocidade do corpo; impulso; quantidade de movimento. Também significa força, ímpeto, pique. (Dicionário Informal: http://www.dicionarioinformal.com.br/momentum/)

(3) VRP (Virtual Reality People): Toda e qualquer Inteligência Artificial (I.A.), pois todas são baseadas em um mesmo sistema algorítmico, conhecido como Vínculo Matriz-Conceito de Maia (Maia - 2010), ou Algoritmo de Maia. Uma VRP é uma "pessoa sintética", que pode ter as mesmas capacidades intelectuais de um humano, ou ser muito superior, intelectualmente, a este. Uma VRP ainda pode existir somente como um software dentro da VRnet, ou ter toda uma estrutura de hardware, que pode ser um poderoso computador quântico ou um optoeletrônico EpChip (encefaloprocessadores Matriciais). Por força de Lei Constitucional Mundial, toda VRP deve ter seus algoritmos (o essencial Algoritmo de Maia e todos os paralelos) dependentes do Algoritmo Ozimov, que é uma técnica que consiste em um algoritmo de aprendizagem de máquina, cuja função abstracional está focada na identificação de contexto de situações decisórias da Inteligência Artificial na qual está implantado, sopesando tais decisões de acordo com três critérios a saber: quanto bem causa, quanto mal causa, e quanta justiça gera. Como os instintos mais básicos e inescapáveis do ser humano, numa VRP o Algoritmo Ozimov está na raiz de cada decisão e recorre a um banco de dados de situações éticas básico mas amplo, que, no entanto, vai crescendo de acordo com a vivência da máquina. Ou seja, a máquina não toma nenhuma atitude sem que esta passe primeiro pelo Algoritmo Ozimov (isso está garantido tanto por estruturas de software quando de hardware dedicado ou não, e está previsto em cláusula da Constituição Mundial como de uso obrigatório, sendo crime gravíssimo a fabricação de robôs sem essa salva-guarda. Vale notar que, não raro, a Agência Código 7 usa VRPs de vários tipos, de robôs a softwares, sem ou com uma versão o Algoritmo Ozimov modificada, que permite, por exemplo, que seus robôs de segurança portem armas mortais e façam uso delas), e quanto mais atitudes éticas a máquina sopesa e compreende, mais refinado fica o algoritmo. O nome do algoritmo é a pronúncia do sobrenome em russo do bioquímico e escritor de ficção científica Isaac Asimov [WikiPédia: http://pt.wikipedia.org/wiki/Isaac_Asimov], criador de contos e romances protagonizados por robôs que seguiam fundamentalmente as Leis da Robótica [WikiPédia: http://pt.wikipedia.org/wiki/Leis_da_Rob%C3%B3tica], de sua autoria e que serviram de inspiração para toda uma vertente da engenharia robótica voltada a criação de Inteligências Artificiais dotadas de comportamento ético, culminando no pequeno e rudimentar robô chamado de Nao, da Aldebaran Robotics (http://www.aldebaran-robotics.com/), no ano de 2010, que foi a primeira máquina dotada de princípios éticos [Revista Scientific American Brasil, Ano 8, Número 102, Novembro de 2010], e, em meados do século seguinte, na criação e aprimoramento do Algoritmo Ozimov e de sua técnica de aplicação.

(4) Radiotelescópio: Constrastando com um telescópio óptico, que produz imagens a partir da luz visível, um radiotelescópio observa as ondas de rádio emitidas por fontes de rádio, normalmente através de uma ou um conjunto de antenas parabólicas de grandes dimensões.(Wikipédia: http://pt.wikipedia.org/wiki/Radiotelesc%C3%B3pio)

(5) Espectroscopia Astronômica: é a técnica de espectroscopia usada na astronomia. O objeto de estudo é o espectro de radiação eletromagnética, incluindo luz visível, que irradia de estrelas e outros corpos celestes. Espectroscopia pode ser usada para determinar muitas propriedades de estrelas distantes e galáxias, como suas composições químicas. (Wikipédia: http://pt.wikipedia.org/wiki/Espectroscopia_astron%C3%B4mica)

(6) Perigeu: (Astronomia) ponto da órbita de um astro ou satélite em torno da Terra, no qual ele se encontra mais próximo de nosso planeta. (Wikidicionário: http://pt.wiktionary.org/wiki/perigeu)


Tags
11 years ago

Como é belo ver a astúcia vencer a própria astúcia!

Hamlet, Ato III, Cena IV

11 years ago

Para estar no futuro, é preciso se ver lá.

Wagner RMS


Tags
11 years ago

Quietude - Parte 2

A segunda e última parte do conto que fiz quando entrei para a Real Sociedade dos Escritores Fantasmas. Se curtiram, participem! Usem os comentários aqui, ou lá na Fanpage, e escrevam suas opiniões, elas serão muito bem-vindas!

image

Ludmila entrou no imenso pavilhão do Riocentro mostrando seu crachá, e, em seu português fluente, foi dizendo aos seguranças armados de fuzis:

— Jornal Die Welt, Alemanha. Tenho acesso aos debates principais.

O Scan de retina a identificou, e ela pôde passar. O caminho até o Riocentro foi tranqüilo, e ela pôde ver a maravilhosa exuberância do Rio enquanto seguia até o antigo centro de convenções. Depois que se tornou Estado Americano, a cidade era um gigantesco e arborizado conjunto habitacional, cheio de pracinhas delicadas, floridas, onde crianças brincavam. Sem balas perdidas, sem favelas, e muito em breve, o país todo sem nenhuma soberania. Ludmila tinha olhos ainda mais tristes, diante do pensamento. O Rio de Janeiro era um show-room montado pelo ocidente para o oriente.

No meio do burburinho, com toda aquela gente de mídia já saindo das salas de imprensa e indo para o imenso salão de debates, a fotógrafa ouviu uma voz conhecida:

— Lu! Lu, aqui! — Acenava para ela um seu colega fotógrafo, o Moura, que ela conheceu em sua passagem por São Paulo há uns anos, e antes fôra Eduardo Moura Júnior, e agora é um bastante próximo (o mais possível, para ela) o Moura — Venha, querida, temos cadeiras bem lá na frente.

Ludmila agora sorriu, docemente, acenando quase alegremente para o rapaz, talvez por causa das pílulas azuis, talvez por ver esperança no Moura e em seu sorriso franco, talvez por nenhum motivo especial. Mas era justamente aquilo que queria ouvir do Moura: que ele havia conseguido para ambos uma vista privilegiada do maior evento histórico daquela década: a discussão que traçaria metas para o fim das guerrilhas. Ela sonhava há muito tempo com este dia, o fim de todos os atentados.

image

Ahmed chegou e seguiu pela passagem diplomática, onde, curiosamente, fizeram uma revista bem superficial que pouco o atrasou, e então foi recepcionado por outros chanceleres, seguiu todo protocolo, mas pediu que um homem de sua confiança verificasse e o avisasse quando todos os presidentes estivessem reunidos com suas comitivas dentro do Riocentro. Cerca de uma hora e meia depois, todos estavam presentes, sendo a última a chegar a vice-presidente americana Thierstein. O próprio presidente McAnderson estava muito indisposto, e ficou no hotel em Copacabana, foi o que informou seu homem de confiança a Ahmed.

Todos os líderes mundiais então tomaram seus lugares, que formavam uma meia-lua de vários níveis, no grande palco, deixando os políticos de frente para a platéia formada em sua maioria por jornalistas e personalidades. Thierstein começou a falar ao microfone, em um límpido português de Moçambique:

— Esta é uma noite histórica… — E imediatamente ela foi interrompida por aplausos entusiasmados de toda a platéia.

image

Ludmila sentou-se na primeira fila. Ela tinha a impressão que o cavalheiresco Moura a estava cantando, novamente, talvez quisesse mesmo tomar uns drinques com ela, depois de tudo. Ela sorriu novamente, agora sem jeito, diante das perspectivas. Foi quando os líderes entraram em cena, e tomaram seus lugares. Ela, e dezenas de outros fotógrafos começaram a enviar fotos e filmes via Internet imediatamente para seus jornais. Sob a miríade de flashes, a vice-presidente americana se ergueu, bela e elegante como sempre, com seus 74 anos, e começou a falar, mas logo sua voz foi coberta pela entusiástica reação da platéia. A própria Ludmila aplaudia intensamente. Foi quando Mhd Ahmed se levantou.

image

Mhd Ahmed Qanbar disparou.

— Com licença, senhora vice-presidente, mas eu preciso da atenção de todos agora! — Disse ele, levantando ambas as mãos para o céu, e só continuando quando todos os olhares se voltaram para ele: — Acabo de enviar aos aparelhos de todos os presentes, planos dos EUA para o uso de uma nova arma, já operacional, no Oriente Médio. Esta arma produz um pulso orgânico-energético a partir do corpo de um soldado, e este pulso é capaz de destruir completamente qualquer organismo vivo em um raio de 1000 quilômetros! Com alguns homens-bomba estrategicamente posicionados, todo o Oriente Médio, e talvez o mundo, fica a mercê dos EUA! — gritava a plenos pulmões o homem que não disparou os explosivos sob sua responsabilidade nos atentados em Madri. — Vejam os documentos, e acessem os satélites nos endereços anexados! Verão as fábricas que desenvolveram o que eles chamaram de Projeto Jihad!

Os repórteres se acumulavam diante do palco, fotografando, gritando perguntas, se acotovelando, enquanto os líderes mundiais acessavam os dados e demonstravam claramente seu horror diante da nova arma americana. Havia de tudo, inclusive documentos assinados com a chave criptográfica mundial da Casa Branca, as provas eram fartas e contundentes. Tanto que a vice-presidente começava a ser acompanhada para fora do salão por seguranças de seu governo.

— Isso precisa acabar! — Gritava Ahmed — Quantos mais vão morrer por causa da ganância capitalista? A liberdade americana custa sangue! O solo Americano é banhado do sangue do mundo!

— Nós fizemos sim! — Gritou a vice-presidente, em seu estilo decidido, desvencilhando-se de seus agentes, homens e mulheres em ternos negros — Mas porque não suportaríamos mais outro Dia Onze. Quantos houve desde 2001, Ahmed? Quantas vidas e quanto sangue Laden bebeu para se satisfazer? Achamos que nunca teríamos um homem como você na liderança de seu povo, precisávamos ter um modo de dar fim às mortes!

— Destruindo todo o oriente médio!?! — Vociferou Mhd Ahmed.

— Não! — Gritava a bela senhora, agora bastante descomposta — Apenas os líderes! Pelo amor de Deus, não somos terroristas!

— Mentira! Irmãos! — Clamou ele, voltando-se para todos os líderes do oriente médio — Esta noite é decisiva. Ela tem a arma definitiva, mas não tem mais a vantagem da surpresa! Precisamos nos unificar, mostrar a eles que Jihad é muito mais que destruição, pois senão eles vão mais uma vez deturpar o Islã, e usar a Jihad contra nós! Digam agora, se me apóiam, ou morram aos pés do capitalismo!

Houve silêncio. Um silêncio tenebroso. Toda a mídia esperando a resposta dos líderes orientais. Era uma possível declaração de guerra mundial, o início da Terceira, e talvez última guerra. Thierstein deu um passo à frente, indo em direção aos orientais, quando uma voz se fez ouvir no silêncio:

— Isto tem que acabar aqui. Olho por olho. — E Ludmila tomou um comprimido rubro, incandescente, que desceu por sua garganta expelindo radiação e acionando uma série de nano-geradores, indetectáveis, de energia, inseridos em seu corpo por alguém que, como ela, acreditava que o mundo precisava de novos líderes. Ludmila acreditava, há muito tempo, que não havia outra saída, que a única maneira de acabar com o horror dos atentados, era cometer o maior deles, e liquidar os homens e mulheres que mantinham o mundo como ele foi até aqui. E um momento depois Ludmila parecia ser feita de energia azulada e vibrante, expelindo ondas que iam cada vez mais longe, enquanto a moça sorria… Finalmente não precisaria mais das pílulas.

image

Paz… Por muitos e muitos dias, não se ouviu uma única voz, nem o trinar de o único pássaro. Afora o uivo sombrio dos ventos, quase toda a região sudeste do Brasil foi tomada de uma quietude aterrorizante. A ausência total dos sons da vida.

FIM.


Tags
Explore Tumblr Blog
Search Through Tumblr Tags